O holandeses e os negros no Nordeste

Os holandeses expulsaram os portugueses de Pernambuco, mas não conseguiram conter a fuga de escravos

Por Rômulo Xavier
 
Os documentos holandeses da época da invasão do nordeste brasileiro trazem impressos dois substantivos familiares ao nosso idioma: capitao-do-mato e feitor. A ausência de palavras equivalentes na língua neerlandesa para descrever tais funções mostra como a organização da sociedade escravista colonial podia ser estranha aos olhos dos novos conquistadores. A capitania de Pernambuco cobria parte dos atuais estados de Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Ali, depois de expulsar as tropas portuguesas, os holandeses se deparariam com a resistência de escravos que fugiam para as matas e formavam quilombos que desafiavam, com suas táticas de guerrilha, as habilidades militares desses temidos conquistadores.
A guerra, que marcou os primeiros anos (1630-1637) da ocupação holandesa, provocou desordens no cotidiano dos engenhos de açúcar espalhados pela capitania. Moendas destruídas, tachos de cobre jogados aos rios e evasão de boa parte dos moradores daquelas propriedades facilitariam a fuga de muitos escravos. Um relatório oficial, enviado em 5 de janeiro de 1634 aos Países Baixos, narrava um dos episódios dessa guerra: o incêndio proposital de um “navio de bom tamanho, vindo de Angola com 300 negros para Barra Grande, onde haviam sido desembarcados os negros”. Esses escravos, que chegavam num momento em que os holandeses tentavam se fixar em Pernambuco, deveriam ser distribuídos para as lavouras de cana-de-açúcar que ainda não haviam caído nas mãos da Companhia das Índias Ocidentais (WIC).  À medida que as tropas da WIC conquistavam o interior da capitania de Pernambuco, vários engenhos foram confiscados. Daqueles trezentos cativos que desembarcaram no sul de Recife, certamente alguns tomariam o rumo das matas fechadas.
Os fugitivos assaltavam propriedades e moradores do interior. Os documentos holandeses os chamam bosnegers (negros da mata) e não é improvável que muitos deles tenham escapado para o quilombo de Palmares. Uma vez ganhando as matas, os bosnegers não tardariam a ocupar as várzeas através de ataques-surpresa aos engenhos e casas de moradores do interior. Em Pernambuco, desde fins do século XVI, as fugas de escravos já causavam dores de cabeça ao poder local. Com a conquista holandesa, em 1630, esse problema apenas mudava de mãos.
As tropas da Companhia das Índias Ocidentais enfrentaram a guerra de emboscadas, estratégia dos escravos quilombolas, que usavam armadilhas, pequenos efetivos e operações pontuais. Era uma tática bem diferente do modelo de combate frontal entre grandes exércitos, comum na Europa. Os soldados holandeses deveriam conhecer bem a geografia local, para tanto contaram com a ajuda de índios tupi (brasilianen) e tapuias, recrutados no Rio Grande do Norte e Ceará. Os índios conheciam os caminhos, as matas, os rios e podiam rastrear fugitivos. Após cinco anos de guerra contra os luso-brasileiros sitiados no Arraial Velho do Bom Jesus, os holandeses já podiam empregar a tática da guerrilha na busca de quilombolas.
Muitos escravos passaram para o lado holandês e serviram à WIC em diversos trabalhos. É possível que alguns deles tenham se tornado livres após três anos de serviços militar para a WIC. Um ex-escravo, Manuel Fernandes, chegou a tornar-se, em 1635, soldado remunerado da companhia. Outros, ao contrário, permaneceram com os seus antigos senhores e ingressaram como soldados na resistência aos holandeses. Acreditavam que assim seriam soldados de sua própria liberdade.
Os soldados holandeses enfrentaram situações muito difíceis.  No inferno da guerrilha, segundo o cronista Diogo Lopes Santiago, “andavam muitos flamengos perdidos pelos matos, onde cada dia os matavam os negros que os encontravam”. O curioso é que vários soldados desertores da WIC formariam, também nas matas, bandos de salteadores.
Mesmo após o inicio da guerra holandesa, muitos escravos continuaram entrando em Pernambuco através de portos ainda não ocupados pelos batavos. É provável que, a partir de 1635, tenha havido uma diminuição brusca na importação de escravos para Pernambuco, pois todos os portos da capitania passaram para as mãos dos holandeses. Até 1637, uma das principais formas de inserção dos batavos no comércio de escravos era através do ataque a embarcações portuguesas que cruzavam o Atlântico abarrotadas de negros. Dessa maneira, muitos negros que eram vendidos em Nova Amsterdam na segunda década do século XVII pela WIC tinham originalmente nomes portugueses.
A maior comunidade quilombola representada pelos Palmares teria se formado em fins do século XVI e inicio do XVII. Ela surgiu, como observou o historiador Flávio Gomes, “com o mundo do açúcar do Brasil e posterior aumento do fluxo do tráfico negreiro”.  Entre os anos de 1570 e 1590, o número de engenhos pernambucanos havia praticamente dobrado, passando de 23 para aproximadamente 70. Para atender ao crescimento vertiginoso da produção, que respondia por mais da metade do açúcar consumido na Europa, foi necessário aumentar a mão-de-obra, que misturava escravos vindos da África centro-ocidental e nativos.
Quando os holandeses invadiram a região, em 1630, já existia mais de uma centena de engenhos, com alguns milhares de escravos. O aumento da produção levaria os portugueses a incrementar o comércio de escravos. A invasão holandesa interrompeu o abastecimento de mão-de-obra para os engenhos pernambucanos, que antes de 1630 recebiam aproximadamente 4.000 escravos por ano. 
Maus tratos e fome faziam parte do cotidiano dos cativos das grandes lavouras açucareiras. Para remediar essa situação, foi permitido que os escravos plantassem suas próprias roças, nas quais se privilegiava o cultivo da mandioca. Essa prática atravessaria boa parte do período colonial. A farinha de mandioca seria o pivô numa luta entre moradores locais, tropas da Companhia das Índias Ocidentais e os escravos salteadores. Tudo isso pela escassez alimentar que iria marcar praticamente todo o período de permanência batava no Brasil.
O Brasil era uma realidade nova que desafiava a racionalidade administrativa da WIC. Se na América do Norte, a companhia obtinha, sem muito esforço, lucros com o comércio de peles no rio Hudson (na região do atual estado de Nova Iorque), no Brasil a sua atividade não foi tão fácil. Aqui, os holandeses não podiam escapar aos meandros de uma sociedade essencialmente escravista, na qual capturar quilombolas era quase tão natural como fazer comércio.  Por serem onerosas, as capturas não era bem vindas aos princípios de uma companhia semi-privada.
Para os holandeses, era impossível vigiar as propriedades do interior, pois grande parte de seu efetivo estava quase sempre de prontidão para a defesa da costa. Qualquer notícia de um eventual ataque ibérico – vale lembrar que Portugal esteve sob o domínio espanhol, a chamada União Ibérica, de 1580 até 1640) –, causava uma espécie de paranóia que mobilizava todas as tropas para a costa. Com isso, os moradores do interior ficavam desprotegidos. À medida que crescia a área conquistada pelas tropas mercenárias da WIC, crescia a vulnerabilidade desse território.
Ainda pouco adaptados, os holandeses perceberam que não poderiam prescindir da experiência de meio século dos luso-brasileiros na região. Um deles, bem conhecido da historiografia colonial, foi João Fernandes Vieira que, em 1638, obteve da companhia o direito de capturar escravos fugidos e traze-los às autoridades holandesas “para lhes serem vendidos a 130 reais a peça, no estado em que se achassem, fossem moços ou velhos, homens ou mulheres”.  Essa cooperação entre batavos e luso-brasileiros seria uma marca da política holandesa em relação aos ‘inconvenientes’ da escravidão. As duas partes lucravam: A Companhia obtia os escravos de volta, enquanto Vieira se tornava um dos homens mais ricos de Pernambuco.
O ambicioso madeirense, porém, não daria conta de tudo: tentando acertar a ‘cabeça’ do monstro que lhes atormentava o sono, os holandeses armariam expedições aos Palmares. Uma delas se deu em 1638, quando o Capitão Lodij, ajudado por índios, tentou avançar mata adentro para surpreender os mocambos. O foco da ação seria o interior de Pernambuco em sua porção sul, mais ou menos à altura da Vila de Porto Calvo – parte da conquista mais vulnerável aos ataques dos bosnegers.

Em 1641, viajando ao sul de Pernambuco para visitar as guarnições que se encontravam até o Rio São Francisco, o conselheiro político holandês Adrien van Bullestrate foi informado um morador na altura do rio São Miguel que o interior, além de desabitado, estava exposto aos ‘ataques de negros’ e outras moléstias.  Correspondendo ao norte do atual estado de Alagoas, era uma região rica em peixes, gados soltos e roças de mandioca. Alguns moradores dessa área pediam que as autoridades holandesas permitissem que índios aldeados [submetidos à autoridade colonial] morassem na região para que tivessem aliados no combate aos quilombolas. De acordo com o relatório de Bullestrate, “todos os moradores queixam-se de que diariamente alguns negros invadem suas roças e plantações e levam tudo quanto podem”.
As reclamações dos atacados pelos ‘negros da mata’ era um sintoma de que nem tudo ia bem no governo de Mauricio de Nassau (1637-1644). A situação de insegurança nos campos contrastava com o que se via na Cidade Maurícia, construída junto ao Recife e rodeada de fortificações. De um lado, tínhamos uma corte renascentista que recebeu intelectuais de diversas áreas. Do outro, uma situação de constante tormento.
É bem verdade que foi durante o governo de Nassau que a WIC conseguiu retomar a produção de açúcar, ocupar a cidade de Luanda, em Angola, empreendendo um vultoso comércio de escravos no Atlântico sul e aumentar ao máximo os territórios conquistados. Os ataques quilombolas, entretanto, não foram contidos: contra os bosnegers não havia manual de guerra que desse jeito.
Quando em 1645 a expedição do Capitão Jan Blaer atingiu alguns mocambos na região palmarina, os holandeses já estavam no Brasil há quinze anos. A chegada aos ‘domínios dos quilombolas’ deixou-os impressionados com as roças de mandioca e feijão, sem contar as armadilhas dispostas pelo caminho. Encontraram e destruíram o que julgavam ser o ‘Palmares Novo’. Mas outros palmares haveriam de surgir e desaparecer até sua destruição definitiva, em 1694.
Rômulo Luiz Xavier do Nascimento  é doutorando em história pela UFF e autor da dissertação "Pelo lucro da companhia": aspectos da administração no Brasil holandês, 1630-1654 (UFPE, 2004).
Saiba Mais - Bibliografia:
FREITAS, Décio. Palmares: Insurreições escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976.
GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: Escravidão e Liberdade no Atlântico Sul. –São Paulo: Contexto, 2005.
PRICE, Richard. Palmares como poderia ter sido. In: Liberdade por um fio: História dos quilombolas no Brasil. João José Reis e Flavio dos Santos Gomes (orgs). – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Copiado de http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/cacada-aos-bosnegers

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