Brasil desigual

Famílias tradicionais do Nordeste consolidaram poder com verba da Sudam e Sudene

Por Rodrigo Miotto, repórter iG em São Paulo, 31 de março, 2002

O golpe nas pretensões presidenciais da governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL-MA), passou pela Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). Foi por conta das investigações no extinto órgão que o R$ 1,34 milhão apreendido na sede da Lunus acabou na tela das tevês e nas páginas dos jornais.

O início das pretensões presidenciais do pai de Roseana, José Sarney, passou pela Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), espécie de irmã mais velha da Sudam. Hoje, as duas extintas agências provocam dor de cabeça para políticos nordestinos, invariavelmente representantes de oligarquias. Mas foram as próprias superintendências que impulsionaram essas oligarquias. São contemporâneas. "Em certos Estados, as oligarquias transformaram-se em intermediários dos investimentos da União", diz Francisco de Oliveira, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

A Sudam e a Sudene não criaram o sistema oligárquico no Norte e no Nordeste. A existência desse tipo de dominação política e econômica já era quase secular. As superintendências deram margem a novas oligarquias, ou oligarquias com roupagens diferentes, dentro de uma política reforçada pelo período militar, acrescenta Oliveira.

Bases cada vez mais sólidas

O idealizador da Sudene foi o economista Celso Furtado, durante o governo de Juscelino Kubitscheck. Com pífios investimentos e péssimo quadro social, o Nordeste destoava de outras regiões do País. Em 1959, a agência saiu do papel e começou a destinar recursos para os Estados nordestinos.

Os cofres da Sudene recebiam recursos de empresas que tinham desconto no Imposto de Renda para investir em projetos na região. Aquelas que se instalavam no local também pagavam menos impostos. Intermediários desses recursos, os políticos locais não demoraram a fixar bases cada vez mais sólidas no meio da população. Respaldados pelas finanças e, logo mais, pelo regime ditatorial, alternavam amigos e familiares no poder.

Além do impacto eleitoral dos investimentos, já de início havia as fraudes. Logo nos primeiros anos da década de 60, os incentivos fiscais geravam denúncias de corrupção na Sudene. A idéia de Furtado também foi desviada. As verbas, no início, não atingiam a prioridade pensada pelo economista, que incluía o combate à seca e o impulso à industrialização. A pavimentação e a abertura de estradas tiveram, entretanto, lugar privilegiado. "O dinheiro repassado para obras públicas muitas vezes servia para encher o baú da oligarquia", diz o cientista político Clóvis Brigagão, diretor do Centro de Estudos das Américas da Universidade Cândido Mendes.

Glauber Rocha e Sarney

Pouco mais de seis anos passados da criação da Sudene, José Sarney derrotava a famosa e violenta oligarquia comandada pelo então senador Vitorino Freire. Em 31 de janeiro de 1966, Sarney ocupou a cadeira do governo do Maranhão. Com dez anos de vida política, Sarney se elegeu com um discurso moralista e de ruptura. Seria uma nova maneira de fazer política, sem miséria e truculência. Rendeu um documentário do diretor Glauber Rocha. Sarney saiu da cadeira cinco anos depois, mas deixou gravada a influência, que permanece até hoje. Menos de uma década e meia depois, foi parar na Presidência da República.

No mesmo ano da posse de Sarney, o regime militar criou a Sudam, nos moldes da Sudene. Desta vez, a idéia era povoar a Amazônia. Não fugiu à regra da irmã mais velha e logo foi alvo de denúncias de desvios e fraudes. Ainda em 1966, Jader Barbalho elege-se vereador em Belém do Pará. Sem grande prestígio na política, vai galgando postos e no início da década de 80 já espalha seu domínio pelo Estado. "É um caso clássico o da Sudam; muito dinheiro transforma-se num meio de consolidação", diz o sociólogo da USP, lembrando que Jader "é político novo, dos anos 70", com raízes no MDB e sem ligações com a velha oligarquia da região.

Collor e ACM

Políticos novos, entretanto, não são a família Arnon de Mello em Alagoas. Arnon Affonso de Farias Mello chegou ao governo do Estado em 1951, derrotando a família Góes Monteiro, que, mais adiante, recuperou o poder. As famílias foram alternando-se. No final da década de 70, Fernando Collor de Mello começa a substituir a influência do pai Arnon no Estado. Acabou na Presidência da República cerca de uma década depois. Alagoas também está dentro da área de atuação da Sudene.

Na Bahia, Antonio Carlos Magalhães estréia na vida política na década de 50 e começa a construir a mítica imagem de homem poderoso a partir dos anos 60. Dali em diante, só perdeu a hegemonia sobre o controle do Estado em uma única gestão. A Bahia, vale lembrar, também é área de atuação da Sudene.

AA: Cidadão Kane tropical

Nos anos 40, começou a carreira política de Aluizio Alves, talvez o maior fenômeno populista da região Nordeste. Após uma participação no Congresso Constituinte de 1945, iniciou uma caminhada vitoriosa pelo Rio Grande do Norte, colocando-se como a esperança do povo diante das velhas estruturas coronelistas.

Chegou ao governo do seu estado em 1960 e, daí em diante, o poder não saiu mais do seu controle, com os Alves ocupando dezenas de cargos públicos e madantos eleitorais: seu filho Henrique Eduardo Alves é deputado federal desde 1970 e, agora, é candidato ao governo para suceder o primo Garibaldi Alves Filho, que já foi deputado e senador; uma irmã gêmea de Henrique, Ana Catarina, é deputada federal, candidata à reeleição e já disputou a prefeitura da capital, Natal, contra o próprio irmão.

Na Assembléia Legislativa do RN, os Alves mantêm sempre dois ou três deputados; um irmão de Aluizio, Agnelo Alves, que já foi prefeito de Natal, agora é prefeito de Parnamirim, a terceira cidade do estado, depois de ter sido senador na suplência do ex-ministro Fernando Bezerra, hoje adversário da família.

Conseqüências materiais da trajetória de Aluízio Alves: a afiliada da TV Globo, o maior jornal do estado, quase uma dezena de rádios, agência de propaganda, produtora de vídeo, postos de gasolina, lojas, instituto de pesquisa, provedor e portal de internet, revista e outros negócios espalhados entre filhos e sobrinhos do patriarca.

Com a influência de Aluízio Alves, os investimentos públicos no estado já foram fáceis via Sudene, Banco do Nordeste e muitos outros órgãos de financiamento.

Agências das Oligarquias

Pensadas para desenvolver o Norte e o Nordeste, as estatais "acabaram se convertendo em máquinas políticas, em agências a serviço das oligarquias locais", afirma a cientista política Maria Celina D'Araújo, professora da Universidade Federal Fluminense e da Fundação Getúlio Vargas.

Fortes em suas regiões, as oligarquias também tinham canais influentes no primeiro escalão do governo. A posse de ministérios e órgãos importantes é sinônimo de mais dinheiro no caixa local.

Recursos e fortunas

Os recursos e incentivos às duas regiões por meio das superintendências e de parte do Orçamento da União alavancaram a economia da região, sem, necessariamente, ter reduzido as disparidades sociais e até mesmo a miséria.

Na década de 60, o PIB (Produto Interno Bruto) do Nordeste cresceu 3,5%, contra 6,1% do Brasil. Já com a Sudene em pleno funcionamento, a região teve um incremento de 8,7% na década seguinte, período do "milagre econômico", contra 8% do País.

De 1980 a 1990, a "década perdida" rendeu crescimento de 3,3% para o Nordeste e de 1,6% para o País. De 1991 a 2000, foram 3,3,% contra 3,1%. No Norte, a participação no PIB nacional subiu de 2,16% no início da década de 70 para 4,34% em 2000.

Parte significativa do capital do Nordeste se baseou em incentivos fiscais. Nos últimos cinco anos, projetos da Sudam e da Sudene consumiram cerca de R$ 10 bilhões com esses incentivos. Entre subsídios e renúncias, o Nordeste, em 2000, somou R$ 5,9 bilhões em investimentos. A Amazônia, R$ 7,8 bilhões. No País todo, foram R$ 42,5 bilhões.

Rombos de bilhões

Significativas também são as fraudes. De acordo com dados da CPI do Finor (Fundo de Investimentos do Nordeste), cerca de 10% de todos os recursos do órgão, subordinado à Sudene, foram desviados desde sua fundação, em 1974. O rombo na Sudam é estimado em R$ 1,8 bilhão. O da Sudene, em R$ 2,2 bilhões. A conta é modesta. Dados do próprio governo, trabalhados pela CPI, estima que US$ 110 bilhões de todos os investimentos públicos feitos na Amazônia teriam sido desviados.

"Não houve nenhuma fiscalização externa. Eram investimentos caros e acabaram destinando as verbas para empresas dos aliados. Era cabra no jardim", diz Maria Celina. "Sem fiscalização, a Sudene foi apropriada pelas oligarquias locais; e a Sudam, pelo coronelismo", concorda a cientista política Lúcia Hippolito. Junto ao incremento da economia dessas regiões, cresceu também o patrimônio dos políticos dominantes locais.

Sarney

"Há 40 anos, o Sarney não tinha nada; hoje ele é o todo poderoso da mídia e tem uma fortuna incalculável; com o Jader Barbalho é a mesma coisa", afirma Francisco de Oliveira. O patrimônio da família Sarney inclui quatro emissoras de TV, o maior jornal impresso do Estado, 14 emissoras de rádio, uma ilha e diversas propriedades. Um levantamento da revista "Veja" estima em R$ 125 milhões a fortuna da família.

Jader

Jader, de origem bastante modesta, possui fazendas, emissoras de TV, de rádio, jornal e diversas propriedades. Ainda segundo a "Veja", o patrimônio do ex-senador seria de, no mínimo, R$ 30 milhões.

ACM e Arnon de Mello

A família de ACM também tem jornal, emissoras de TV, rádio e diversas empresas. A família Arnon de Mello igualmente. Além da fortuna, outra característica comum entre os políticos dominantes do Nordeste é a posse dos meios de comunicação.

Privatizações

Para alguns, fatos como a queda de ACM e de Jader no Senado e o caso Roseana são sinal de decadência da oligarquia do Norte e do Nordeste. O presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos (Ibep), Walder de Góes, diz que o processo de privatização pelo qual passou o Brasil na década de 90 "ajudou a reduzir as ações de corrupção".

Pelo raciocínio, a venda de estatais deslocou parte dos investimentos da esfera pública para a esfera privada, inibindo as fraudes. No entanto, de acordo com Góes, "a redução do poder pelo lado da privatização precisa ser complementada por mudança na cultura política". Para ele, existe uma "cultura leniente com a corrupção" nessas regiões. "As oligarquias ainda mantêm forte influência sobre a população. Veja o caso de ACM na Bahia e o da família Sarney no Maranhão. Apesar de tudo, ainda continuam com eleitores fiéis", diz o presidente do Ibep.

Para Francisco de Oliveira, a queda das oligarquias passa pela disputa do poder por novos grupos. "O controle oligárquico tende a diminuir, o que não quer dizer que será muito democrático. Às vezes, as formas perversas de utilização do dinheiro continuam sem ser necessariamente uma oligarquia."

Fonte: http://www.ig.com.br com Jornal de Hoje (Natal/RN)

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