ÍNDIOS POTIGUÁRA: ALGUNS ASPECTOS...


No interior da Terra Indígena, trabalham, na agricultura, alguns não-índios contratados por índios. A quando de nossa estada, não havia invasores no território desses índios (cf. um informante). Os Potiguára vivem em uma terra à beira-mar, que se expande para o interior do continente, em área com revestimento da mata atlântica, que, em parte, está danificada, em decorrência do desmatamento realizado para as práticas agrícolas dos indígenas. Entretanto, estes sabem da necessidade da preservação de espécies animais em extinção, que existem em sua Terra, tais como o jacaré-açu e o peixe-boi, animais que, tradicionalmente, eram mortos, com fins de consumo interno, sendo os dentes, nas duas espécies, utilizados na confecção de adornos, tais como colares. Vi, na aldeia, colares fabricados com dentes destes animais.
A economia dos Potiguára está voltada, principalmente, para a pesca, que é realizada na costa marítima e nos manguesais. Peixes, lagostas, camarões e caranguejos são capturados. A pesca é o setor produtivo ao qual se dedica a maioria desses índios. Na pesca, fazem uso de puçás, no interior dos quais colocam caranguejos como isca para atrair os peixes. Na agricultura, produzem mandioca, feijão, milho, maracujá, coco, mamão, inhame e acerola. A produção de coco é volumosa e destinada, como as demais, ao consumo interno (inclusive ritualístico, cf. registro abaixo) e à comercialização no mercado externo. Dois dias antes de minha chegada à aldeia, segundo o informante, havia saído da reserva um caminhão levando algumas toneladas de cocos, para a venda no Rio de Janeiro. A cultura do coco é um dos setores mais rentáveis da economia desses índios.
Fazem a coleta de diversos frutos existentes em abundância em árvores localizadas esparsamente nas terras das aldeias, tais como mangueiras e bananeiras. Praticam pequeno criatório bovino. Galinhas são criadas como "economia de quintal". A alimentação dos Potiguára se baseia nos produtos das atividades acima descritas. Não lhes falta alimentos e a Terra Indígena é servida por riachos de cursos permanentes, onde praticam a pesca e a coleta fluvial.
Segundo os informantes, a maioria dos índios Potiguára é católica. Porém, há alguns filiados à seitas protestantes, tais como à Igreja Batista e à Assembléia de Deus (pentecostal). No interior da terra Potiguára há pequenos templos, formal ou informalmente constituídos; são casas residenciais nas quais são realizados rituais religiosos. Estes sinais de influência dominadora da sociedade inclusiva não significam, porém, o total alheamento dos Potiguára de hoje ao seu universo mítico ancestral, que se expressa, na sociedade e nas atitudes dos indivíduos, pela mediação de rituais e de crenças tradicionais. É neste espaço-tempo mítico, que os Potiguára procuram preservar sua identidade étnica, que é reforçada pelo fato de viverem em um território indígena, sob as lideranças de chefias política (cacique geral e chefes locais) e xamanística (pajé) indígenas.
Os rituais praticados pelos Potiguára de caráter público expressam, por um lado, a participação desses índios em um dos sinais característicos do conjunto dos povos indígenas de toda a região tipicamente nordestina e, por outro, a adoção de modelos culturais da sociedade dominante, como a seguir. No primeiro caso, se insere a prática do toré e, no segundo, algumas danças tradicionais, que remontam, no passado, a influências heterodoxas de origens não indígenas. Os ritos praticados pelos Potiguára se podem classificar como: a) Rituais e danças públicos – Toré; Ciranda; Samba-lelê; Dança do Guarapira; Coco de roda; Festa do milho, e Cerimônia ao morto; b) Rituais secretos.
Para dançar o “toré”, muitos índios Potiguáras ostentam uma vestimenta composta de uma “saia”, que é fabricada de "embira de jangada" (família das timeleáceas, gênero Daphnopsis), e um cocar de penas de aves. O conjunto é extremamente semelhante às vestes utilizadas pelos índios Tuxá, da Bahia, quando estes dançam o toré. A “saia” vai da cintura até a altura dos joelhos. O cocar Potiguára é confeccionado com penas pretas de gavião e com longas penas vermelhas e azuis de arara. O cocar que é usado pelo chefe indígena da aldeia visitada, excepcionalmente, tem mais de l,50m. de comprimento; ele passa pela testa e desce pelo dorso até a cintura. É uma peça de grande beleza em face da variedade de cores, que se alternam, por estarem as penas pretas entremeadas com as vermelhas e as azuis, todas presas a uma corda delicada fabricada de algodão fiado. As penas de gaviões são obtidas na própria área indígena; porém, as de araras são importadas de outras regiões, de vez que elas não mais existem aí. O chefe indígena, por ocasião do ritual, porta um maracá, composto de um coco seco, que contém um cabo confeccionado de costela de peixe-boi, e, também, conduz arco e flecha. Nas danças, os participantes usam pintura corporal, com tinturas extraídas do urucu (vermelha) e do genipapo (preta). A dança do toré é praticada isoladamente, ou seja, como um rito em si mesmo, e como parte de todos os demais rituais. "É o começo de todas as danças; nele vem a fôrça e, então, a gente dança" (cf. um chefe indígena).
A “ciranda”, segundo o informante, "é diferente da dos brancos". A “festa do milho” ocorre por ocasião da festa de São João, "que é o santo nosso padroeiro". "Dia 19 de abril é o dia da grande festa nossa" (cf. um informante).
Quanto ao cerimonial dedicado à pessoa que morre, apreciemos a narrativa de um informante: "Quando morre uma pessoa, a comunidade canta a noite toda; canta dentro da casa do morto, onde está o corpo dele. Tem um cemitério, na reserva e, no entêrro, as pessoas andam ligeiro, levando o caixão; não andam devagar. A pessoa que já morreu aparece". Em seguida, o informante narrou um fato no qual foi personagem. Refere-se a um chefe indígena - o cacique Damião - que morreu há algum tempo: "Ele apareceu a mim e disse duas palavras: Nós vamos construir, e o que ele disse deu certo. Só aparece os importantes; não aparece todo mundo." O informante não explicitou o que foi construído, mas assevera que algo referente aconteceu. Será a misteriosa construção a grande casa desse chefe indígena? Como se percebe, trata-se da integração entre o sobrenatural e a concretude da vida na sociedade, ao nível do pensamento mítico e mágico,.
O chefe de cada aldeia organiza e dirige os rituais em seus grupos locais. Não tive a oportunidade de obter maiores informações sobre outros rituais, exceto um registro, ao qual me referirei abaixo. Os Potiguára fazem um "preparo", que se constitui de uma bebida cujos componentes são a cachaça ou o álcool puro e o coco. Este é descascado e perfurado; pelo furo, uma vez retirada a água, é colocada uma daquelas substâncias alcoólicas. O buraco é fechado com uma rolha de cortiça e o líquido fica fermentando por alguns dias. A ingestão desta bebida, que tem forte poder embriagador, é inerente à prática de todos os rituais, danças ou festas dos Potiguára.
Na cultura material, os Potiguára confeccionam e utilizam ritualisticamente (além dos artefatos já anteriormente referidos): borduna, tacape, colares e pulseiras. Também produzem objetos utilitários, tais como: balaio, samburá, puçá, cesta, cortina, roupeiro etc. Na fabricação dos colares, empregam restos de cascas de mariscos, dentes de diversos animais, tais como de jacaré e do cação, pedaços trabalhados da parte dura do coco, sementes, além de miçangas de diferentes cores. Alguns tipos de colares são de grande beleza e fabricados com sofisticação artística. Nos trançados e na cestaria empregam palha, fibra e casca de coco. O chefe do grupo local visitado disse-me, textualmente: "A minha religião é amar a natureza. Existe uma fôrça, existe um poder...". Esta crença manifesta esboçada por este índio remete-nos à sua narrativa mítica constante acima neste texto, a qual se referente a seu contato com um cacique, após a morte deste antigo chefe tribal. Este cacique, em sua manifestação, predisse um fato referente a algo que seria construído, o que de fato teria acontecido.
Uma informante se referiu à crença Potiguára em uma bola de fogo que corre atrás das pessoas. Segundo ela, no entendimento indígena, essas bolas de fogo são crianças Potiguáras que morreram e que perseguem os vivos. Esta mesma informante fez algumas revelações a propósito de aspectos secretos do universo sócio-cultural Potiguára. Na dimensão ideológica, trata-se de representações que, além do caráter secreto (e até porque), contém, em uma teia de grande complexidade, crenças, valores, decisões e comportamentos que têm sua lógica neste sistema sócio-cultural específico, que engendra padrões éticos e um código de comportamentos próprios. A inteligibilidade do costume, que vem narrado a seguir, deve ser referida, necessariamente, ao sistema cultural em pauta, dadas às características ritualísticas do mesmo e às conseqüências decorrentes. Esta crença potiguára tem evidente caráter condenatório subsumido pelo grupo social como um todo. A informante disse-me que, estando escondida na mata, viu um pescador índio dirigir-se a um personagem mítico, conforme a narrativa abaixo. Traduzo a narrativa utilizando, em parte, palavras da informante:
“Há na terra Potiguára uma área desabitada, isolada, recoberta de mata densa e onde se encontram os mangues, ricos em peixes, caranguejos e siris. Para os índios, o dono dessa área, dos peixes, dos caranguejos e dos siris é o pai do mangue, um espírito. A única possibilidade de um índio pescar nessa área é se comunicando com o pai do mangue, a quem dirige o pedido para pescar. Sem o pedido e a permissão do espírito dono da área, o pescador não consegue pescar, nada pesca. O pedido é feito pelo pescador estando só, em total isolamento; então, ele, com os braços para o alto, se dirige ao encantado, em tom dramático. Porém, este pedido significa, também, uma troca; nele está contido um compromisso recíproco entre os dois, o pescador e o espírito. O pescador deve oferecer, ao pai do mangue, uma pessoa da comunidade indígena, em agradecimento pelo peixe e pelos mariscos que pretende pescar. A pessoa oferecida não está presente ao momento da oferta, nem tem conhecimento de que foi ofertada. O pescador, ao retornar à aldeia, reparte o pescado com outros membros da comunidade, entre os quais, o incógnito ofertado. Este come a parte que lhe coube; em conseqüência, morre”.
Neste cenário mítico, todos os personagens estão em igualdade de condições; todos podem ser vítimas e algozes, ao nível das representações e crenças estruturadas no pensamento mágico indígena dos Potiguára.



FONTE:http://www.carlosbranco.jor.br/mostratempesp.asp?codigot=1529&menuvolta=listatempesp.asp&codigo=ALL
Tempo-Espaço e Memória
Orlando Sampaio Silva
Professor Titular da UFPA. Doutor em Ciências Sociais(Antropologia).
ossilv@attglobal.net


Comentários

Postagens mais visitadas