Revolta dos Malês: Guerreiros de Alá na Bahia
Com
uma espada na mão e o Corão na outra, os africanos conhecidos como
malês puseram Salvador em pânico numa madrugada de 1835, usando o Islã
para unir os escravos contra a opressão.
Os poucos
soldados da polícia de Salvador que foram acompanhar o que parecia
outra averiguação de rotina sobre escravos rebeldes, numa madrugada
sonolenta de janeiro de 1835, provavelmente tiveram a pior surpresa de
suas vidas ao dar de cara com aquela cena. De espada em punho, um bando
enfurecido de uns 50 homens negros partiu para cima dos incrédulos
policiais, gritando “mata soldado” e palavras de ordem em idiomas
africanos. De repente, o papel da escolta do juiz de paz Caetano Galião,
que comandava a diligência, deu lugar a uma reação desesperada para
tentar salvar a própria pele. Carregando afobados as espingardas, os
soldados nada puderam fazer para impedir o avanço dos guerreiros
africanos, que mataram um patrulheiro e feriram outros quatro, ganhando a
seguir as ruas da cidade. Começava o que ficaria conhecido como
“Levante dos Malês”, uma rebelião comandada por muçulmanos em plena
Bahia.
Esse
primeiro esquadrão de revoltosos, impelido a começar o levante algumas
horas antes do combinado devido à delação de outros africanos, alertou
os demais grupos malês da cidade para se unirem ao combate. No fim das
contas, centenas de muçulmanos e seus aliados enfrentaram o Exército nas
ruas de Salvador durante a madrugada, no que foi a maior revolta urbana
de escravos das Américas. A documentação da época sobre o levante não é
muito clara quanto ao objetivo final dos rebeldes, mas há indícios de
que eles pretendiam implantar um Estado comandado por africanos
islâmicos, no qual até os negros e mulatos nascidos no Brasil teriam um
status subalterno.
Aos
poucos, as investigações do governo baiano sobre o levante foram
revelando uma rede clandestina de propaganda islâmica, que unia os
escravos que já tinham vindo da África como muçulmanos a outros
convertidos no Brasil e a africanos adeptos de outras religiões. Graças
ao ambiente um pouco menos sufocante da escravidão urbana na Bahia, os
malês conseguiram criar uma organização rebelde bem diferente da
representada pelos quilombos, em geral formados por escravos que
escapavam de grandes propriedades rurais. “A maioria das mais de 20
conspirações e levantes escravos acontecidos na Bahia na primeira metade
do século 19 envolveu escravos rurais dos engenhos do Recôncavo”,
afirma o historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia,
autor de Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês,
1835, um dos principais estudos sobre o tema.
A África e
o Brasil que produziram a rebelião malê eram bem diferentes da situação
que favoreceu a existência do quilombo de Palmares por quase 100 anos
durante o século 17. E isso a começar pela própria região de origem dos
negros trazidos para a Bahia no final do século 18 e começo do 19. Em
vez das tribos de agricultores angolanos que predominavam no início da
colonização, a principal fonte de novos escravos para Salvador e os
engenhos de açúcar baianos eram os belicosos reinos da África Ocidental,
onde hoje é a Nigéria. “Eram as civilizações mais desenvolvidas da
África negra”, afirma o historiador Décio Freitas, ex-professor da
Universidade Federal de Alagoas.
Donos de
tecnologia comparável à da Europa medieval e totalmente integrados às
rotas de comércio que uniam a África ao Ocidente, povos como os iorubás,
os jejes e os haussás chegaram a formar Estados poderosos, muitos deles
já influenciados pelo islamismo. Contudo, naquela época, tais nações
não estavam durando muito, dizimadas por uma série catastrófica de
conflitos. O destino dos guerreiros derrotados ou o de sua família tanto
podia ser o trabalho de pastor escravo no reino iorubá de Oyo, quanto a
terrível travessia do Atlântico rumo à Bahia. A moeda que pagava essa
viagem sem volta normalmente era o fumo baiano. “É graças a esse
rentável comércio de fumo que a Bahia foi a única região do Brasil a
receber escravos sudaneses em grande quantidade”, diz Décio.
Não
demorou muito para que os senhores de escravos percebessem que estavam
dormindo com o inimigo, já que décadas de guerras internas ou contra
Estados rivais haviam forjado uma forte tradição guerreira entre os
africanos recém-chegados. Para João Saldanha da Gama, o conde da Ponte,
governador português da província entre 1805 e 1810, os novos escravos
pertenciam a “Naçoens as mais guerreiras da Costa Leste” e eram uma
séria ameaça à paz.
Dentro de
alguns anos, contudo, os baianos se viram às voltas com problemas ainda
mais sérios. No rastro da independência do Brasil, foi preciso retomar
em combate a própria Salvador das mãos dos portugueses, e a província
toda, assim como diversas outras regiões do país, virou palco dos
conflitos entre brasileiros e portugueses que permaneceram aqui, sem
falar nas rebeliões militares e nas revoltas das camadas mais pobres da
população contra a crise econômica. O cheiro de insurreição contra os
impopulares regentes, que estavam no poder enquanto o jovem dom Pedro II
ainda era menor de idade, estava tão forte no ar que o levante dos
malês explodiu no mesmo ano que a Revolução Farroupilha, no Rio Grande
do Sul, e a Cabanagem, no Pará.
Como se
não bastasse todo esse fermento revolucionário, boa parte dos escravos
de Salvador (dos quais 63% tinham nascido na África) gozavam de um grau
de liberdade insuspeito. É que, diferentemente dos negros que se
esfalfavam nos engenhos, muitos deles nem moravam com seus senhores ou,
quando isso acontecia, trabalhavam o dia todo fora de casa. Era a
chamada escravidão de ganho, na qual os escravos exerciam os mais
variados ofícios (vendedores ambulantes, pescadores, pedreiros,
carregadores de cadeiras) para sustentar o próprio dono, trazendo-lhe
depois o que conseguiam trabalhando.
Alguns
até podiam ficar com uma porcentagem (ridícula, obviamente) do que
ganhavam, e com esse dinheiro compravam mais tarde a própria alforria.
Além de gerar um número considerável de libertos (que incluía também os
que eram libertados pelo patrão por qualquer que fosse o motivo), esse
sistema permitia que os negros montassem sua própria rede de amizades e
contatos. Entre os malês, por exemplo, não era raro encontrar um liberto
morando no andar térreo de um sobrado que alugava a sua “loja” (uma
espécie de porão das antigas casas coloniais) para um escravo e este,
por sua vez, alugava um cantinho do lugar a outro amigo.
Foi
graças a isso tudo que a revolta começou a tomar forma em Salvador.
Inadvertidamente, os traficantes de escravos acabaram trazendo para as
praias baianas não só guerreiros experientes, mas também pessoas que
freqüentaram escolas onde se ensinava a ler e escrever em árabe, a
recitar as suras ou versículos do Corão e a seguir os demais preceitos
do profeta Maomé. A maioria dos que tomaram parte no levante parece ter
sido de origem iorubá (ou nagô, como se dizia na Bahia de então), etnia
africana criadora da religião dos orixás, mas entre a qual o Islã estava
em expansão no começo do século 19. A própria palavra “malê” parece vir
do termo iorubá imale, que quer dizer “muçulmano”.
Sujeitos
como os escravos iorubás Ahuna e Pacífico Licutan, pessoas experientes,
muito cultas e carismáticas, logo se puseram a unir em torno de si seus
companheiros que já eram muçulmanos e a espalhar a palavra de Maomé
entre outros escravos. Essa pregação incluía ensinar a ler e escrever em
árabe, a recitação de passagens do Corão e a distribuição de pequenos
amuletos de couro, recheados com trechos do livro sagrado. Esses
talismãs foram muito difundidos e eram considerados poderosos até por
quem não era islâmico.
Aparentemente,
a idéia de uma revolta só foi tomando corpo devagar. A princípio, os
malês se contentavam em organizar um fundo comum para pagar alforrias
uns dos outros, ou em se reunir para celebrar sua religião. Segundo João
José Reis, o grupo chegou até a construir uma espécie de mesquita – uma
palhoça no quintal dos fundos do inglês conhecido como Abraham, senhor
dos escravos malês James e Diogo. Ali, eles conseguiram celebrar o
Lailat al-Miraj, festa que comemora a ascensão de Maomé ao céu, no final
de novembro de 1834. Tudo ótimo, se não fosse o aparecimento do
inspetor de quarteirão Antônio Marques, que pôs os pobres malês para
correr e denunciou a reunião às autoridades baianas. Abraham, tentando
evitar problemas para si próprio, ordenou que seus escravos pusessem a
mesquita abaixo. “Não é impossível que essa última humilhação tenha sido
o estopim da revolta”, afirma João Reis.
Tanto a
união em torno do Islã quanto a solidariedade étnica influenciaram os
rebeldes. Para Décio Freitas, foi o cimento religioso que conseguiu unir
povos diferentes e até inimigos entre si no mesmo levante. “O grande
problema dos africanos aqui é que eles eram muito diferentes uns dos
outros. Em Palmares, foi preciso até inventar uma nova língua, com base
em vários idiomas africanos e no português. Uma religião universal como o
Islã conseguiu aglutiná-los”, diz Décio. Mesmo assim, era difícil
esquecer as velhas divisões. “Em 1835, nem todo muçulmano entrou na
revolta e nem todo rebelde era muçulmano”, diz João José. Segundo ele,
os haussás, por exemplo, que constituíam o grupo étnico mais numeroso
entre os mais islamizados, compareceram com poucos guerreiros. O
movimento foi levado a cabo sobretudo por muçulmanos de origem iorubá,
os nagôs. Esse contorno étnico da revolta permitiu, por seu turno, que
muitos nagôs não-islamizados, mas que acreditavam na solução armada para
a liberdade e na força protetora dos amuletos malês, entrassem no
levante.
Seja como
for, não poderia haver data mais religiosa para a revolta. O dia 25 de
janeiro, um domingo, era a festa de Nossa Senhora da Guia, mas também o
dia 25 do mês muçulmano do Ramadã – época do ano consagrada ao jejum, na
qual acreditava-se que espíritos malignos e forças do mal eram
neutralizadas. O plano era simples: ao amanhecer, a vanguarda dos
rebeldes, espalhada por vários grupos menores na cidade, reuniria o
maior número possível de africanos e depois iria se juntar aos adeptos
da zona rural do Recôncavo. A idéia era tomar o poder matando todos os
nascidos no Brasil, inclusive outros negros, embora alguns depoimentos
falem em conservar os mulatos como escravos dos vitoriosos. O inimigo
principal, é claro, eram os brancos.
Informações
sobre o levante, porém, vazaram no começo da noite anterior, por meio
de alguns libertos que, sabendo do plano, o denunciaram a seus
ex-senhores. Estes, por sua vez, alertaram o presidente da província da
Bahia, Francisco de Souza Martins. Sem perder um segundo de tempo, ele
reforçou a guarda do palácio do governo, colocou todos os quartéis da
cidade em alerta e redobrou as rondas noturnas. As casas de africanos
suspeitos começaram a ser reviradas no início da madrugada.
Foi então
que explodiram os confrontos, por volta da 1h30 da manhã, na “loja”
onde morava Manoel Calafate, um dos líderes malês. Tentando arrombar a
casa onde parte dos conspiradores se reunia, a patrulha ficou impotente
diante dos muitos guerreiros muçulmanos, armados de espadas e vestindo o
abadá, espécie de camisolão branco que era o traje ritual dos malês. A
maioria deles subiu a Ladeira da Praça, onde estava o sobrado de
Calafate, enquanto outros pularam o muro dos fundos e seguiram outro
caminho. Ambos os grupos tentavam acordar e reunir o maior número
possível de adeptos do movimento, muitos dos quais ficaram desnorteados
com o início precoce do levante.
A
primeira parada foi a praça do Palácio. A intenção dos malês era
arrancar da cadeia seu líder Pacífico Licutan, preso para ser leiloado
por causa de uma dívida de seu senhor. Má idéia: os guardas da prisão,
que ficava no subsolo da Câmara Municipal, se entrincheiraram e
disparavam sem parar sobre os africanos, que também ficaram sob fogo
cerrado dos guardas do palácio governamental. Os rebeldes mataram só um
dos guardas palacianos e saíram dali, recebendo reforços de todos os
lados. Uma tentativa de tomar o quartel do convento de São Bento repetiu
o que acontecera na prisão: os soldados se fecharam dentro da fortaleza
e acabaram repelindo os malês. A essa altura, alguns deles já tinham
morrido.
Depois
desse último combate, o grupo conseguiu se reorganizar perto do convento
das Mercês, para onde se dirigiram mais malês vindos do bairro da
Vitória, muitos deles escravos de uma colônia de ingleses do lugar. O
ataque seguinte dos malês, que já contavam centenas de guerreiros, foi
sobre o quartel de polícia no largo da Lapa. Tudo conforme o figurino de
novo: dos 32 guardas, dois foram mortos, enquanto os demais recuaram
para o interior do quartel e, à bala, impediram que os malês o tomassem.
Após mais
algumas escaramuças, os rebeldes viram que aquilo não estava
funcionando. Decidiram deixar a cidade e buscar seus companheiros que
viviam no Recôncavo, mas no meio do caminho havia um quartel da
cavalaria baiana, numa localidade chamada Água de Meninos. Tentando
passar, foram recebidos com uma saraivada de balas e forçados a combater
a cavalaria lá fora, enquanto aguentavam os disparos dos soldados a pé
dentro do quartel.
Foi um
massacre. Uma primeira carga de cavalaria dispersou o grupo inicial de
50 ou 60 africanos e passou a caçá-los pela estrada. Logo chegaram mais
malês, mas não dava para suportar por muito tempo os tiros ininterruptos
que vinham do quartel, ainda mais com o baixíssimo número de armas de
fogo de que dispunham os rebeldes. Um segundo ataque dos soldados
montados encerrou qualquer resistência. No total, cerca de 70 rebeldes
tinham morrido, contra apenas nove soldados e civis baianos. Bem antes
de amanhecer, tudo estava terminado.
A devassa
que se seguiu puniu cerca de 500 africanos, mas como muitos processos
estão incompletos é difícil identificar a sentença de todos eles. Apenas
quatro foram condenados à morte, já que isso acarretaria prejuízos
sérios a seus senhores, que recorreram quase invariavelmente desse tipo
de sentença. Muitas chibatadas, em geral na casa das centenas,
aguardavam 45 deles, enquanto 34 foram deportados de volta à África. É
difícil especular qual teria sido o destino da rebelião, se ela tivesse
sido vitoriosa.
“Isso não
fica claro, exceto que seria uma sociedade controlada pelos africanos,
possivelmente pelos nagôs islamizados. Mas eles não conseguiriam
manter-se no poder sem alianças sólidas com outros grupos étnicos e
sobretudo com os numerosos nagôs adeptos do culto aos orixás”, diz João
José. “A delação certamente selou a sorte dos rebeldes mais cedo, mas os
fatores se encontram tanto entre os africanos como entre seus
adversários. Além de mais bem armados, estes estavam unidos quando se
tratava de dar combate aos africanos, para o que contavam com
brasileiros de todas as classes e cores, escravos ou não.”
O
controle sobre os escravos cresceu na Bahia, mas a revolta também ajudou
a impor uma redução do tráfico negreiro e, finalmente, sua extinção em
1850, por medo de que mais africanos se unissem como os malês. Segundo
João José, os escravos baianos ganharam fama de rebeldes e, de certa
forma, isso pode ter aumentado seu poder de barganha junto aos senhores.
“O medo foi uma conseqüência nada desprezível que a revolta de 1835
conseguiu fincar por muito tempo na mente senhorial”, afirma.
Texto de Reinaldo José Lopes.
Referência Bibliográfica:
Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês, 1835, João José Reis, Cia. das Letras, 2003.
O
historiador João José Reis, da Universidade Federal da Bahia, reconstrói
de forma vívida a batalha entre os guerreiros malês e o governo baiano,
mas talvez o aspecto mais interessante do livro seja o de mostrar como o
movimento não tinha nada de aberrante quando inserido no momento
histórico que o Brasil vivia. Esmagado por uma crise econômica das
piores, o País e a Bahia de então eram verdadeiros campos minados de
revolta. Reis também explora em detalhes como era a escravidão urbana em
Salvador, muito diferente da vida tradicional dos cativos nos engenhos.Clique aqui e saiba mais sobre Revoltas e Documentos que forjaram a história dos protestos no Brasil
FONTE: http://saibahistoria.blogspot.com.br/2012/12/revolta-dos-males-guerreiros-de-ala-na.html
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