A Casa da Torre de Garcia d’Ávila
[Conclusões
da obra O Feudo, de Luiz Alberto Moniz Bandeira, 2ª
edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, 695p.]
A
caravela, na qual Diogo
Álvares viajava, naufragou no litoral da baía de Todos os Santos,
entre 1509 e 1511, conforme ele próprio indicou a Francisco d’Ávila,
Pero Lopes de Souza e Juan de Mori, que lá o encontraram em
distintas épocas, isto é, em 1526, 1531 e 1535, respectivamente.
Qual o nome da nau jamais se conheceu. Quando exatamente o naufrágio,
se houve, ocorreu nunca se confirmou. E a versão de como Diogo Álvares
sobreviveu entre os tupinambás, transmitida, oralmente, através de
várias gerações até o século XVII, assumiu contornos de uma
lenda. Não obstante as distorções, que sofreu, todos os indícios
concorrem, entretanto, para atestar sua historicidade. E neste caso,
como Pedro Calmon ponderou, a lenda é valiosa para a explicação
dos acontecimentos, quando documentação suficiente não existe,
pois, sem a substituir, pode muitas vezes iluminar os hiatos e
completar o enredo, que de outro modo se tornaria incompreensível[1].
Na ciência, da mesma forma que nada se pode afirmar, nada também
se pode desmentir sem provas conclusivas ou, ao menos, evidências
incontestáveis, como vários historiadores o fizeram com respeito
à história de Caramuru. Destarte, o que se pode inferir como real
e racional foi que Diogo Álvares, ao dar à praia, se escondeu,
provavelmente, entre os
arrecifes de Maiririquiig, na embocadura do Rio Vermelho, onde uma
cunhantã o encontrou, coberto de sargaços, razão pela qual
ele recebeu a alcunha de Caramuru, e entregou-o ao pai, chefe
da maloca, que o aprisionou. Conforme os costumes dos tupinambás,
essa cunhantã assumiu a condição de guardiã do prisioneiro, até
o dia em que ele seria abatido para o banquete. Ao que tudo indica,
porém, Diogo Álvares salvou algum arcabuz e barril de pólvora,
entre os destroços do navio, que decerto encalhara naqueles
arrecifes Maiririquiig, e deixou os índios atônitos e apavorados,
ao dispará-lo, com grande estrondo, matando alguma fera ou ave.
Essa arma ele decerto usou, em seguida, contra os inimigos da tribo,
e aí sua posição realmente se inverteu. Conquanto nenhum
documento conhecido permita confirmar ou mesmo desmentir o episódio
do tiro de arcabuz, o mais verossímil foi que realmente ele
ocorreu. Àquele tempo, antes e depois do episódio de Diogo Álvares,
outros portugueses, que faziam a “carreira da Índia”,
naufragaram no litoral da África e lá também os cafres fugiam,
apavorados, quando os viam dar tiros com arcabuzes. Os historiadores
portugueses Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e Antônio Lopes
ressaltaram, em um estudo amplamente documentado sobre Naufrágios
e Outras Perdas da “Carreira da Índia”, que, nos séculos
XVI e XVII, “a espingarda constituía o melhor
instrumento de defesa dos náufragos”, pois, “ao menor
tiro, os cafres fugiam com medo, tendo sido elas (as espingardas) as
grandes responsáveis pelo respeito em que foram mantidas boa parte
das populações autóctones com que os portugueses se cruzaram”[2].
O mesmo, tudo indica, ocorreu no Brasil,
uma vez que Diogo Álvares dificilmente conseguiria
sobreviver e impor sua preponderância entre os tupinambás, antropófagos,
que habitavam o litoral da Bahia, se não revelasse alguma forma de
superioridade representada pela arma de fogo.
Desde
então, porém, Caramuru manteve estreito relacionamento com os
franceses, servindo como intermediário no escambo com os tupinambás,
e parece fora de dúvida que foi o próprio Jacques Cartier que o
levou, em 1528, para Saint Malo, juntamente com duas índias, lá
batizadas nos dias 29 e 30 de julho daquele ano, com os nomes de
Katherine du Brézil e Perrine. Mas a cunhantã batizada em Saint
Malo, com o nome de Katherine du Brésil, não foi certamente a
mesma que o encontrara nos arrecifes de Mairariquiig, 18 ou 19 anos
antes, e que com ele, àquele tempo, passara a viver. Em 1528, ela
seria velha para casamento e procriação, segundo os padrões
tupinambás, bem como para adaptar-se à travessia do Atlântico e
às condições climáticas da França. A que viajou para Saint
Malo, onde, batizada, recebeu o nome de Katherine du Brasil, e que,
depois, entraria para a história como Catarina Paraguaçu foi,
evidentemente, alguma outra índia púbere, kugnatin,
com não mais do que 14 anos, idade para casamento entre os tupinambás.
De qualquer forma, o fato de que a índia, batizada em 29 de julho
de 1528, teve por padrinho o “noble homme” Guyon Jamyn, casado
com Thomasse Cartier, e por madrinha Catherine des Granges ou des
Granches, filha do condestável de Saint Malo, Jascques des Granges,
e esposa de Jacques Cartier, e tomou o nome de
Katherine, acrescido com o du Brésil, evidencia certa importância
ou por ser ela filha de algum chefe tribal e/ou mulher de Diogo Álvares,
homem fundamental no relacionamento dos franceses com os indígenas.
Diogo Álvares, que viveu mais de 40 anos entre os tupinambás,
teve, certamente, várias mulheres,
com as quais se unira in lege naturæ e das quais houve inúmeros filhos. Entretanto,
diferentemente dos demais cristãos, ele não apenas conservou seu
crédito entre os índios como,
ao contrário do costume da terra, em que quase todos os
homens tinham “suas negras (índias) por mancebas”, ele passou a
viver apenas com uma esposa, Catarina, com a qual se casara em Saint
Malo, porquanto em nenhum momento os seis jesuítas, acompanhantes
de Tomé de Sousa, sempre o elogiaram e jamais recriminaram seu
comportamento, tal como Nóbrega censurou o de João Ramalho, cuja
vida constituía petra
scandalis para eles.
O
papel que Caramuru também desempenhou, como intermediário das relações
de Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil, com os
tupinambás foi fundamentalmente importante, na medida em que os
cristãos gozavam de “pouco crédito” entre eles, depois da
experiência com o capitão-donatário da capitania, Francisco
Pereira Coutinho. Mas, posteriormente, ele se distanciou, não mais
podendo exercer influência, quer entre os portugueses quer entre os
tupinambás, que reagiam à conquista e à crescente expropriação
de suas terras. Faleceu em 5 de outubro de 1557, deixando Catarina
viuva com suas quatro filhas, Ana, Genebra, Apolônia ou Pelônia e
Grácia. Àquele tempo, Garcia d’Ávila, que chegara com Tomé de
Sousa, já se destacava como o homem mais poderoso da Bahia. Após
subjugar, em 1550, as tribos existentes ao Norte de Salvador,
escolheu para instalar sua base de operações um cerro isolado, que se
alevantava ao lado do pequeno porto de Tatuapara, 50 metros sobre o
nível do mar, e ali ergueu um baluarte, em taipa e madeira,
rebocadas com cal de marisco, por dentro e por fora. Essa construção,
situada cerca de 13 a 14 léguas ao Norte da Bahia de Todos os
Santos, teria a função de casa de residência e, ao mesmo tempo,
atalaia fortificada, e ele a denominou Torre de São Pedro de Rates.
Era o nome de uma velha freguesia medieval, nas cercanias de Póvoa
de Varzim, ao Norte de Portugal, entre o Minho e o Douro, de onde
Tomé de Sousa, filho bastardo do clérigo e prior João de Sousa,
procedia e onde provavelmente o próprio Garcia d’Ávila nascera e
se criara. Aliás, todas as circunstâncias, inclusive a frase do
padre Manuel da Nóbrega – “parecendo-me estar ainda Tomé de
Sousa nesta terra” – fazem crer que Garcia d’Ávila fora também
um dos dois filhos bastardos que Tomé de Sousa tivera, chamado
Garcia (o outro, Francisco), e servira na Índia, de acordo com o
Nobiliário de Rangel de Macedo. O nome Garcia, aliás, era usual na
família de Tomé de Sousa, primo que era de Garcia de Sousa
Chichorro, cujo filho também chamado Garcia de Sousa foi morto em
Tanger. Muito significativo, como evidência da estreita ligação
de parentesco, foi também o fato de que Tomé de Sousa vendera ou
legara a Garcia d’Ávila mais 14 léguas de terra de sesmaria, que
o rei D. Sebastião lhe outorgara, em 1563 e 1565, e que se
estendiam desde um pouco acima de Itapoã até o rio Real, além de
Tatuapara, onde ele já erguera a sua torre. Possivelmente Garcia
d’Ávila nunca se identificou como filho de Tomé de Sousa, porque
a lei portuguesa proibia aos capitães-mores e governadores conceder
sesmarias aos seus familiares, ainda que isto pudesse haver
ocorrido.
Devido
à influência sobre o governo colonial, os fidalgos,
bem como outros servidores do Reino e até mercadores
marranos receberam verdadeiras donatárias, ou seja,
maiores extensões de terra do que os habitantes do sul, de
origem mais humilde, e estabeleceram o regime de arrendamento aos
pequenos colonos, subdividindo a doação entre eles e criando assim
a classe dos agregados agrícolas. Ao lado do Estado, que outorgava
ao particular o direito de propriedade territorial, sob a
forma de sesmaria, os
beneficiários transmitiam a outros o mesmo direito, por meio do
mesmo título. Apesar de suas especificidades e de estar acoplado ao
mercantilismo emergente, esse regime fundiário, em que a
desigualdade social dos colonos determinou que as sesmarias do Norte
abrangessem maior extensão territorial do que as do Sul,
apresentou assim características nitidamente senhoriais e
feudais, dado que as concessões de sesmarias implicavam também
obrigações militares e outras modalidades de serviços, que
consubstanciaram o contrato de vassalagem, durante a feudalidade clássica[3].
O proprietário dos latifúndios, que vivia na Cidade do Salvador ou
mesmo em Lisboa, extraia geralmente a renda da terra por meio de
escravos e de agregados, aos quais arrendava as fazendas, a fim de
que eles desbravassem as florestas e talassem os campos para a
pastagem do gado ou as plantações de cana, mas estavam obrigados a
prestar ajuda militar ao rei de Portugal, do qual eram vassalos. E
Garcia d’Ávila, também foreiro do conde de Castanheira, adotou o
mesmo procedimento. Como senhor do maior latifúndio da Brasil, já
a estender-se, no fim do século XVI, até o rio Jacuipe, ao sul, e
o Itaipucuru, ao norte, passou a explorar suas terras, em grande
parte, meio de arrendamento a terceiros, cujo controle fazia da
torre de Tatuapara, através de procuradores, ao mesmo tempo que
mantinha um contingente de índios forros, “para ocasiões de
inimigo, que muitas vezes costumam vir ali”.
O
herdeiro do seu imenso domínio foi o neto, Francisco Dias d’Ávila
Caramuru, filho de Isabel d’Ávila, sua filha, havida de uma índia,
que se casara com Diogo Dias, neto de Caramuru. Esse rapaz, ainda
jovem, contou com o apoio de Manuel Pereira Gago, amigo e procurador
de Garcia d’Ávila, que, zelosamente, o casou com sua filha, Ana
Pareira, e, em 23 de agosto de 1621, já a identificar-se como
“senhor da Torre de Tatuapara”, obteve uma sesmaria de dez léguas
com seis de largura, por serviços prestados à Coroa, ao empregar
criados, escravos e índios frecheiros, para reprimir, às suas próprias
custas, o levante dos índios tapanhunos. Ele continuou assim a
expandir o domínio, que herdara, e a espalhar os currais de gado
pelo sertão, na medida em que a pecuária, no curso do século
XVII, continuou a assumir cada vez mais crescente significação
econômica e social, em função da intensa procura de gado bovino,
cavalar e muar pela indústria do açúcar, que o empregava para o
transporte terrestre a pequenas distâncias bem como tração nos
engenhos e trapiches. Ademais, a criação de gado vacum requeria
pouca inversão de capital e
dispensava especialização, não demandava tantos braços como a
cultura da cana e a produção do açúcar, nem exigia o mesmo esforço
de trabalho, a que os indígenas não estavam acostumados. E a
miscigenação dos colonos com as índias também facilitou alianças
com diversas tribos, o que permitiu o combate, a expulsão ou o
extermínio de várias outras, que continuavam hostis e se opunham
à expansão dos currais.
Não
foi, no entanto, apenas a expansão dos currais que impulsionou
Francisco Dias d’Ávila a adentrar o sertão. Em
21 de abril de 1624, D. Filipe IV emitiu então um alvará,
mediante o qual o autorizou a devassar os sertões fora da
autoridade dos governadores, para fazer o descobrimento das minas de
prata, cujo segredo Belchior Dias Moréia, o Moribeca, seu tio,
dizia possuir. Esta expedição Francisco Dias d’Ávila só teve
condições de empreender depois que os portugueses e espanhóis
reconquistaram a Bahia, ocupada em 1624 pelos holandeses. Não
descobriu as minas de prata, mas localizou as de salitre e obteve
permissão para
assenhorear-se de mais 200 léguas de terra, “desde o rio S.
Francisco até o rio da Cachoeira, de rio a rio (...), as serras
todas de Jacobina e a serra de Loisembá, e destas ditas serras para
o sertão 100 léguas, e daí para a costa do mar outras cem léguas”
[4].
Este domínio passou para o filho de Francisco Dias d’Ávila,
chamado Garcia d’Ávila, como o bisavô, e ele, orientado pelo
padre Antônio Pereira, que o casou com a tia, Leonor Pereira,
tratou de converter em terras, e
expandir ainda mais seus domínios, o acervo político que a
Casa da Torre acumulara
com o apoio prestado à restauração do domínio português sobre o
Nordeste brasileiro. O conde de Castelo Melhor, em 1651, ainda
durante a guerra contra as forças da Companhia das Índias
Ocidentais, concedeu-lhes, ao sobrinho e ao tio, de sesmaria toda a
terra existente desde a primeira cachoeira, no rio S. Francisco, até
a última aldeia dos Caririguaçus, com as ilhas, pontas, enseadas
etc., e daquela cachoeira para baixo até entestar com terras
povoadas, no limite da capitania de Sergipe com a Bahia.
Naturalmente, o que ainda interessava ao padre Antônio Pereira e ao
capitão Garcia d’Ávila, naquela época, era, sobretudo,
assegurar a posse e a propriedade das terras e localizar as minas de
prata. Esta ambição de localizar as minas de prata continuou a
motivar as entradas no sertão, sob o pretexto de combater os índios,
já não mais chamados gentios, mas bárbaros, que se insurgiam e
atacavam vilas, engenhos e rebanhos de gado, inconformados com a
apropriação de suas terras e adversos à escravização, à qual
os colonos os tratavam de submeter.
A
dilatação do domínio da Casa da Torre, em mais de algumas
centenas de léguas dentro sertão do S. Francisco, acarretou-lhe,
entretanto, sérios confrontos. Com toda a força de que dispunha, a
Companhia de Jesus não pode contrapor-se frontalmente aos
interesses da Casa da Torre, que dispunha de imenso poder, não
apenas político, mas também militar, tanto que a casa-forte de
Tatuapara continuava como um baluarte tão importante quanto as
outras fortalezas pertencentes ao Estado português, fornecendo as
tropas necessária para reprimir não apenas os índios rebelados
como também os mocambos, que os escravos africanos, fugitivos, começaram
a formar nos sertões, em ambas as margens do rio S. Francisco. E o
capitão Garcia d’Ávila, o segundo do nome, deixou seu domínio
para o filho Francisco Dias d’Ávila, também o segundo do mesmo
nome. Este Francisco Dias d’Ávila, conquanto seu pai, o capitão
Garcia d’Ávila, fosse realmente
o primeiro a desbravar aqueles sertões do Nordeste, adentrando o
Piauí e a Paraíba, até o Tocantins, no Brasil Central[5],
e as lindes do Maranhão, continuou a conquista do sertão e foi
possivelmente “ o capitaneador do largo desenvolvimento e ocupação
do setor setentrional da zona da pecuária”, conforme Basílio de
Magalhães admitiu, a ressaltar que, se esta suposição se esteasse
em elementos mais firmes e valiosos, não vacilaria em afirmar que
seu nome “bem merece lugar de maior destaque entre os heróis da
expansão geográfica do Brasil no século XVII”[6].
Em
1678, o rapto de Isabel d’Ávila para casar com Manuel Pais da
Costa, possibilitando que ele, na condição de marido, pretendesse
imediatamente alcançar sua parte na herança, a legítima paterna,
levou Catarina Fogaça a casar sua outra filha, Leonor, que
completara 18 anos de idade, com o irmão, o coronel Francisco Dias
d’Ávila 2°, em favor dos quais, a fim de “perpetuar a família”,
ela, na condição de mãe, e a velha Leonor Pereira, avó, instituíram,
em dote, vínculo de morgado, que o rei de Portugal aprovou em 1681.
Doaram-lhes destarte todas as terras que possuíam no rio S.
Francisco, começando da barra do rio Verde pelo rio abaixo, até o
Penedo, assim como, na outra banda do rio, as da serra de Orobó,
pelo rio abaixo até a
volta de Casaratá, entrando nessas terras todas as que havia pelo
riacho de Pajeú, com todas as suas cabeceiras.
Em
toda essa superfície de terras, que, na expressão de Euclides da
Cunha, “abusivas concessões de sesmarias subordinaram à posse de
uma só família, a de Garcia d’Ávila”[7],
as missões jesuíticas haviam avançado no curso do século XVII e
daí os atritos que levaram a Casa da Torre a destruir, em 1669, as
que foram instaladas em Jacobina e à expulsão dos padres das
aldeias de Sorobabé, Acará e Curumambá, em 1696. Esses atritos não
resultaram de divergências relacionadas com a escravização dos índios,
à qual – não à legalidade, porque os próprios padres tinham
escravaria, mas ao modus
faciendi – a Companhia de Jesus, mas decorreram de diferenças
sobre a delimitação das terras atribuídas às missões, conforme
a legislação vigente. Ao adentrar os sertões o objetivo do
coronel Francisco Dias d’Ávila 2°, como dos seus antepassados, não
foi prear índios, ainda que o fizessem, mas os expurgar de algumas
regiões, a fim de possibilitar a procura das minas de ouro
e prata, bem como a exploração do salitre, da qual cogitava, e manter a paz no seu domínio,
reduzindo-os à ordem, para a segurança dos os currais, rendeiros e
foreiros.
A
forma como se realizava a acumulação de capital na pecuária
demandara essa contínua expansão, por onde houvesse terras disponíveis,
cuja ocupação ocorria de forma extensiva e, até certo ponto,
itinerante, pois o regime de águas e a distância dos mercados
exigiam periódicos deslocamentos das manadas. E como ocorrera nos
países mediterrâneos da Europa, na Provença, no Pirineus, e ainda
mais na Espanha e no Mezzogiorno da Itália, a criação de gado
transumante reforçou consideravelmente o senhorio rural. Naquelas
terras, às margens do S. Francisco e seus afluentes, os senhores
tinham currais próprios e outros pertenciam aos que arrendavam sítios,
geralmente de uma légua, por 10$000 réis de foro cada ano[8].
de fato, a propriedade fundiária no Nordeste brasileiro configurou
realmente um oligopólio. Enquanto o mestre de campo Antônio Guedes
de Brito possuía cerca de 160 léguas, desde o morro do Chapéu até
a nascença do rio das Velhas, a Casa da Torre, que sempre
funcionara como bastião militar, possuía 28 propriedades
arrendadas[9],
só no vale do Piancó, Piranhas de Cima e Rio do Peixe, na Paraíba,
além de dominar uma extensão de 260 léguas de testada, na
capitania de Pernambuco, à margem do rio S. Francisco, entre o qual
e o Parnaíba apossou-se de mais de 80 léguas[10].
D, Fernando de Lencastro, governador de Pernambuco, informou ao rei
de Portugal, em carta de 28 de junho de 1699, que a Casa da Torre,
os herdeiros de Antônio Guedes de Brito e Domingos Afonso Sertão,
moradores na jurisdição da Bahia, “pessoas poderosíssimas e
riquíssimas”, eram senhores de quase todo o sertão” daquela
capitania. E esses possuidores do solo, como os senhores da Torre de
Garcia d’Ávila e os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, dos
quais Euclides da Cunha considerou “modelos clássicos”, eram
realmente “ciosos dos dilatados latifúndios, sem raias”, mal
toleravam a intervenção da própria Coroa e a “ereção de
capelas, ou paróquias, em suas terras fazia-se sempre através de
controvérsias com os padres”, que, embora pudessem finalmente
ganhar a partida, “caíam de algum modo sob o domínio dos grandes
potentados”[11].
A
Casa da Torre, no início do século XVIII, arrendava sítios,
geralmente de uma légua, à razão de 10$000 réis por no ano. Um
desses rendeiros foi Domingos Afonso, cognominado Sertão ou
Mafrense, que formou na confluência
das capitanias setentrionais, próximo ao mesmo tempo do Piauí,
Ceará, Pernambuco e Bahia, cerca de 50 fazendas[12]
e, a exercer como os outros senhores de terra o que Euclides da
Cunha denominou de “feudalismo
achamboado – que levava a transmudar em vassalos os
foreiros humildes e em servos os tapuias mansos”, aliou-se na
“mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o
padre”[13].
No início do século XVIII, a zona de criação de gado já se
estendia das raias
setentrionais de Minas Gerais a Goiás, ao Piauí, à Paraíba, aos
extremos do Maranhão e Ceará, pelo ocidente e norte, e às
serranias das lavras na Bahia, a leste. E o domínio da Casa da
Torre, através de mais de 400 léguas, representava o dobro da
capitania do Piauí e fora maior do que qualquer das donatárias
concedidas por D. João III. De fato, ao contrário dos bandeirantes
de S. Paulo, que apenas devassaram a terra, mas não se preocuparam
fazê-la economicamente render, os senhores da Torre, ao longo de três
séculos, ocuparam-na e trataram de a explorar, ou expandindo sua
criação de gado ou arrendando sítios e fazendas, instituindo um
senhorio, ao mesmo tempo em que se constituíam como poder político
e militar, com seus próprios regimentos de milícias, o que dava ao
seu domínio característicos de
um feudo.
As
sesmarias outorgadas à Casa da Torre e a outros sesmeiros no Piauí,
assim como no Rio Grande do Norte e outras capitanias do Nordeste,
compreendiam quase toda a extensão do seu território, porém seus
titulares, na maior parte, residiam na Bahia ou Pernambuco. A Casa
da Torre, da mesma forma que Antônio Guedes de Brito e seus
descendentes, exerceram o domínio sobre tão vastas possessões de
terra por meio de procuradores, aos quais o governo colonial
outorgava patentes de sargento-mor, capitão-mor ou mestre de campo,
investindo-os de autoridade e tornando-os verdadeiros régulos, de
modo que igualmente pudessem assegurar a ordem e impor a soberania
de Portugal. Pedro Barbosa Leal, Teodósio de Oliveira Ledo, João
Correia Arnaud , Antônio Gomes de Sá, Bento da Costa e outros
foram alguns dos seus procuradores, espécie de vassalos, que lhes
pagavam o foro e lhes serviam, em troca de apoio e força junto ao
governo colonial. Também Domingos Afonso Sertão, no Piauí, foi um
dos seus rendeiros e associados, da mesma forma que Domingos Roiz de
Carvalho, na bacia do Pajeú, e Antônio Oliveira Ledo, seus irmãos
e sócios, que saíram do vale do S. Francisco e descobriram os sertões
do Rio Grande do Norte. Esses e outros homens, que atuavam como
procuradores da Casa da Torre, sempre tiveram sob suas ordens
companhias de ordenanças, que utilizaram como fator dissuasório
contra ocupações indevidas e em respaldo à
cobrança dos foros. Naturalmente, a presença de tropas da
Bahia, vinculadas aos grandes sesmeiros, concorria naturalmente para
tornar mais precária a posição dos foreiros e posseiros, nos longínquos
sertões da Paraíba e do Piauí, onde as terras estavam
entregues ao mando e desmando de procuradores, homens rudes e
violentos, que pouco a pouco assumiram, de fato, o seu senhorio.
Como
Nelson Werneck Sodré muito bem acentuou, o amplo espaço que a
ordem privada encontrava, na colônia, em contraste com o reduzido
espaço a que a ordem pública se reduzia, configurou toda a
estrutura administrativa e, em conseqüência, afetou a própria
organização militar. Em tais circunstâncias, na medida em que
poder público dependia e se identificava
com o poder privado, condições, portanto, não havia para
qualquer ação mais firme da Coroa contra a Casa da Torre ou contra
outros senhorios de latifúndios, uma vez que lhes cabia a consolidação
da conquista e a defesa das fronteiras da colonização, quer contra
os índios insubmissos e insurrectos quer contra os estrangeiros,
corsários e piratas, que continuavam a infestar os mares do Atlântico
Sul e sobressaltar, permanentemente, o litoral do Brasil.
Entretanto, embora necessitasse, para a defesa da colônia, do
senhor da Torre de Garcia d’Ávila e de outros latifundiários,
cujos interesses o governo colonial, sediado na Bahia, sempre
favorecia, a Coroa, desde o fim do século XVII, começara a
preocupar-se com o problema da terra, em virtude das complicadas
questões que começaram a surgir com a concessão de novas
sesmarias e a necessidade de demarcá-las. A distância das regiões,
nas quais os governos outorgavam as sesmarias, facilitava a
indeterminação dos seus limites e os sesmeiros tiveram condições
de os alargar tanto quanto puderam, na medida em que subjugavam ou
exterminavam os tapuias. Àquele tempo,
em virtude do crescimento da população, que a busca do ouro
na primeira metade do século XVIII acelerou, as pressões sobre os
recursos existentes recrudesceram e impulsionaram as migrações. E,
destarte, quando os colonos adentraram cada vez mais os sertões e
começaram realmente a povoá-los, poucas terras havia, nos sertões,
para distribuir. A luta pelo domínio da terra, que primeiro a Casa
da Torre travou contra
os índios, continuou, mas com os novos povoadores, que passaram a
ocupar suas sesmarias, nas várias regiões do Nordeste.
Garcia
d’Ávila Pereira, o terceiro do nome, herdou o domínio de seu
pai, Francisco Dias d’Ávila 2°, e recebeu, o foro de fidalgo
cavaleiro da Casa Real, com cota d’armas.em 2 de junho de 1700, o
alvará para fazer a vila de 60 vizinhos, da qual seria donatário
de juro e herdade, com jurisdição ordinária, bem como o
hábito de Cristo e as tenças. Ele foi o 5° senhor da Casa
da Torre, o único caso na história do Brasil, em que sucessivas
gerações da mesma família, ao longo de dois séculos, desbravaram
e distenderam ainda mais os caminhos abertos, trilhados e
percorridos pelos seus pais e avós, como se missão cumprissem,
construindo um domínio com características evidentemente similares
às de um feudo da Idade Média, em que centenas de rendeiros eqüivaliam
aos servos da gleba, pagavam-lhes o foro e prestavam vassalagem,
inclusive com obrigações militares. Garcia d’Ávila Pereira, porém,
arcou com os problemas, que surgiram e recresceram no curso do século
XVIII. A exploração, em escala até então inusitada, das minas de
ouro e diamantes, produzira profundas repercussões em todo o
Brasil, cuja população aumentara para
aproximadamente 2,5 milhões de habitantes, e nos sertões do
Piauí, assim como das mais diversas capitanias do Nordeste, as
contendas pela posse da terra, entre os moradores e os titulares de
sesmarias, cada vez mais se intensificaram, dado que os arrendatários
e os procuradores dos sesmeiros
apareceram, a exibirem as cartas de doações e a reclamarem
seus direitos. Os litígios judiciais com foreiros e posseiros então
avolumaram-se e afetaram, sobretudo, o domínio da
Casa da Torre. O coronel Garcia d’Ávila Pereira, ainda que
no mais das vezes não se afastasse de Tatuapara, mandou os
prepostos, comandando tropas para
fazer guerra aos índios de corso, bem como desencorajar e
intimidar os invasores de suas terras, nos sertões do Piauí e da
Paraíba. Seu filho, porém, Francisco Dias d’Ávila 3°, nem
mesmo da Torre, de onde raramente saiu, comandou, ao que se sabe,
qualquer expedição. Aparentemente, não se interessou pelos sertões
nem se empenhou para evitar que os rendeiros e posseiros
senhoreassem suas terras, no Piauí e na Paraíba. Foi apenas o
morgado, que, conquanto tirasse grossas rendas das terras aforadas
ou administradas por feitores, possuía também engenhos de açúcar,
bem como fábricas de farinha e de óleo de baleia, que ainda mais
aumentavam seu cabedal. Sempre com a saúde abalada, faleceu, em 1°
de abril de 1750, aos 42 anos, devido à gota artrítica, segundo se
supôs, deixando uma filha, com cerca de 16 ou 17 anos e
batizada com o nome da bisavó, Leonor Pereira Marinho, e um
varão chamado Garcia d’Ávila (o 4°) Pereira de Aragão, que,
com o seu consentimento, requereu, em 28 de fevereiro de 1750, a
carta de emancipação. Este Garcia d’Ávila Pereira de Aragão,
herdeiro do morgado, pretendeu também que o rei D. José lhe
confirmasse do senhorio de juro e herdade da vila, que seu avô o
coronel Garcia d’Ávila Pereira mandara construir para ele e seus
descendentes, conforme acordado pelo rei D. Pedro II com sua bisavó
Leonor Pereira Marinho[14],
e recebeu a patente de mestre de campo. Não teve, porém, de
combater. Terras não havia a desbravar, nem mais os índios
constituíam no sertão séria ameaça aos colonos. Seis gerações
de Dias d’Ávila, ao longo de 250 anos, conquistaram os sertões
do Nordeste, expandiram seus currais de gado, pelas margens do S.
Francisco, da Bahia à divisa do Piauí com o Maranhão, e construíram
um domínio com nítidas características de um feudo, como o
senhorio de juro e herdade da vila de sessenta vizinhos, sobre a
qual o coronel Garcia d’Ávila, o 3° do nome, e seus descendentes
exerceriam jurisdição ordinária nos termos da ordenação
filipina. Esta época, no entanto, terminara. A casa-forte construída
na colina de Tatuapara ainda permanecia como atalaia e o terço de
infantaria das marinhas da Torre, transformado em regimento de milícias,
continuava a integrar o sistema de defesa de Salvador. Mas o feudo,
que a Casa da Torre construíra, já se desintegrava, desde os
meados do século XVIII, na medida em que as aldeias, organizadas
pelos padres, desenvolveram-se e, sempre em torno de uma igreja,
tornaram-se vilas, tal como na Europa acontecera. Os povoados
sertanejos, como Jeremoabo, Massacará, Natuba, Sorobabé, Pambu,
Pajeú e tantos outros, surgiram das antigas aldeias dos índios,
que os jesuítas e regulares de outras ordens organizaram, em território
conquistado pela Casa da Torre e sob seu domínio.
Garcia
d’Ávila Pereira de Aragão, sexto neto do primeiro Garcia d’Ávila
e sétimo neto de Diogo Álvares, o Caramuru, e
Catarina Álvares, a índia tupinambá batizada em Saint
Malo, casou duas vezes, mas não deixou sucessão. Foi o último varão
da descendência de Diogo Dias e Isabel d’Ávila, ou seja, o sétimo
e último senhor da Torre da dinastia dos Dias d’Ávila. Sem
herdeiros necessários, legou então todos os bens vinculados ao
morgado à sobrinha, filha mais velha de Leonor Pereira Marinho e
José Pires de Carvalho e Albuquerque, Ana Maria de São José e
Aragão, que desposara um primo também chamado José Pires de
Carvalho e Albuquerque, o secretário de Estado e Guerra e senhor
dos engenhos de Cazumbá, Rosário, Passagem, S. Miguel e N. S. da Conceição. Desde então, os interesses da Casa
da Torre, proprietária também de vários engenhos, voltou-se cada
vez mais para a economia do açúcar, relegando a um plano secundário
a criação de gado, que no Nordeste entrava em decadência, em
virtude de vários fatores, como a perda de produtividade, o aumento
dos custos do transporte das manadas para o litoral e a competição
da pecuária em franca expansão na província do Rio Grande de S.
Pedro, no Sul do Pais. Os senhores de engenho, com cujas famílias
– Pires de Carvalho e Albuquerque, Bulcão, Moniz, Aragão, Falcão
Brandão, Rocha Pita, Marinho – a Casa da Torre estava entrelaçada
estreitamente por laços de parentesco, afiguravam-se também, assim
como outros sesmeiros litorâneos, autênticos donatários de
capitanias, barões feudais, com torres ou casas-fortes, com
artilharia e armas, com gente sob seu governo e comando, com
encargos e privilégios militares. A intenção da Coroa portuguesa
e as condições sob as quais concedera as sesmarias, para a construção
de engenhos no Recôncavo, foram as mesmas que levaram o primeiro
Garcia d’Ávila a construir seu domínio, a partir da Torre de
Tatuapara: erguer, juntamente com cada unidade de produção, uma
fortaleza, em que o senhor das terras se tornava o capitão,
responsável pela defesa não apenas do seu próprio domínio, mas
também da cidade do Salvador e de demais regiões da colônia,
contra ataques de índios selvagens ou contra os corsários e outros
invasores estrangeiros. O colono, que se fazia agricultor, fora
assim compelido pela Coroa de Portugal e pelas condições da
conquista, a tornar-se também guerreiro. E essa obrigação de
construir fortalezas, torres ou casas-fortes, robusteceu nos
senhores de engenho da Bahia as características de nobreza feudal,
que permaneceram, mesmo quando raramente tiveram de exercer funções
militares.
O
desenvolvimento que a colônia alcançara, no curso do século
XVIII, deu-lhes consciência de sua importância e, da mesma forma
que outros segmentos das classes altas, criadores de gado, homens de
negócios ou os encarregados das minas, os senhores de engenho
tornaram-se cada vez mais ávidos de títulos, honras e postos
militares. A Coroa, entretanto,
jamais concedera um
título nobiliárquico aos descendentes de famílias nobres de
Portugal, nascidos no Brasil, para onde seus antepassados começaram
a emigrar, desde o tempo de Tomé de Sousa. E a demanda de igualdade
absoluta entre os portugueses nascidos nas duas bandas do Atlântico,
que se manifestara, pela primeira vez, durante a guerra contra os
holandeses, induziu os brasileiros a reivindicar a equiparação de
direitos com a metrópole. Destarte, o nacionalismo, já a
afirmar-se nos estados da
Europa, começou também a manifestar-se e a desenvolver-se no
Brasil, onde o culto de Paraguaçu, como a raiz nativa da elite
baiana e, conseqüentemente, brasileira, assinalou sua emergência. Sem
dúvida, o nacionalismo no Brasil não significava, àquele tempo, a
separação, e sim sua equiparação e identificação com Portugal, em nível de
igualdade, ou seja, a conquista da autonomia, como reino unido.
Nas camadas subalternas da sociedade, descontentamento ainda maior
fermentava, devido, particularmente, à discriminação que os
crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos livres continuavam a
sofrer, não podendo ascender a postos mais altos nas milícias e
nos regimentos de linha. Em meio de tal ambiente, a idéia da república,
que antes animara os conspiradores de Minas Gerais fascinados com o
exemplo dos Estados Unidos, começou
então a espraiar-se, inspirada igualmente pela Revolução Francesa
(1789).
A
conspiração de 1798, na Bahia, conhecida como a Conspiração dos
Alfaiates ou Conspiração dos Búzios, porque os conjurados se
distinguiam por um búzio pendente das cadeias do relógio, foi
certamente mais
importante que a de Minas Gerais, que ocorreu em 1789 e levou ao patíbulo
apenas o alferes Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o
Tiradentes. O maior número de executados naquela capitania indicou
sua transcendência, tanto sob o ângulo da irradiação social
quanto da definição de seus objetivos, a instauração de uma
“república democrática, onde todos seriam iguais, onde os
acessos a lugares representativos seriam comuns, sem diferença da
cor, nem da condição (...)”. A identidade dos presos e as
circunstâncias que os entrelaçavam podiam permitir que as
autoridades atinassem a teia da conjuração. Todos os seus fios,
desvendados ao longo da devassa, conduziam a Joaquim Inácio de
Siqueira Bulcão, José Pires de Carvalho e Albuquerque, secretário
de Estado e Guerra do Brasil, e ao próprio governador da Bahia, D.
Fernando José de Portugal, depois marquês de Aguiar, que seria seu
beneficiário. Joaquim Inácio de Siqueira Bulcão,
senhor de diversos engenhos, era casado com Joaquina Maurícia
de S. Miguel e Aragão, irmã mais moça de Ana Maria de S. José e
Aragão, cunhado, por conseguinte, de José Pires de Carvalho e
Albuquerque, secretário de Estado e Guerra do Brasil, ambos,
portanto, sobrinhos do senhor da Torre de Garcia d’Ávila. Os
desembargadores Manuel de Magalhães Pinto de Avelar Barbedo,
ouvidor geral do crime, e Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto,
encarregado das diligências, não quiseram, porém, aprofundar a
devassa, que poderia envolver o próprio governador e outras
“pessoas principais”, que referidas foram em diversos
depoimentos. Ao que tudo indicou, a conjuração de 1798, na Bahia,
configurou uma tentativa da nobreza da terra, visando a mobilizar os
militares e a plebe, de modo que, respaldada e legitimada por uma
insurgência popular, pudesse conquistar a soberania e a
auto-determinação, sob a forma de república independente, uma vez
que a Coroa portuguesa lhe negava a igualdade de direitos com a
classe dominante na metrópole. Apesar de que, durante o século
XVIII, os comerciantes, tanto do atacado quanto do varejo, assim
como os adjudicatários dos monopólios da Coroa, se tornassem cada
vez mais importantes nas cidades, como Salvador, aquela aristocracia
rural, encarnada fundamentalmente pelos senhores de engenho, passara
a representar uma comunidade de interesses e constituía então a
classe social que, a desenvolver a Nationalbevußtsein
(consciência nacional) mais rapidamente do que as outras camadas da
população, tinha condições assumir a organização do estado,
cujo território se conformara no curso da colonização.
A
mudança da corte de
Lisboa para o Brasil, quando o exército de Napoleão Bonaparte
invadiu Portugal, possibilitou que o príncipe regente, D. João, ao arribar à
Bahia em 1808, abrisse os portos do Brasil às nações amigas. Na
verdade, alternativa não lhe restou. Não mais podia manter o monopólio
do comércio exterior do Brasil pela metrópole, monopólio sobre o
qual o regime colonial alicerçava,
uma vez que Portugal fora ocupado pela forças de Napoleão
Bonaparte. Evidentemente, naquelas circunstâncias, a extinção do
monopólio aduaneiro pela metrópole, característica básica do
sistema colonial, favorecia, na Europa, apenas à Inglaterra, a única
nação que não fora subjugada pela França. Mas atendia aos
interesses dos senhores de engenho, que viviam das exportações de
açúcar, e de outros plantadores. E a emancipação do Brasil, então
economicamente mais importante do que a metrópole, D. João
formalizou, quando, terminada a guerra contra a França de Napoleão
Bonaparte, converteu-o em Reino Unido a Portugal e Algarves, em 16
de dezembro de 1815, tornando-o, por conseguinte, nação soberana,
personalidade jurídica do direito internacional, reconhecida por
todas as potências, àquela época.
A
revolução liberal, que principiou no Porto, em 1820, e se alastrou
a Lisboa, bem como à ilha da Madeira e a quase todo o arquipélago
dos Açores, refletiu,
em larga medida, o ressentimento da burguesia e das classes médias,
em Portugal, prejudicadas com a emancipação comercial do Brasil,
desde a abertura dos portos. Os dois reinos, àquele tempo, estavam
unidos pela monarquia, mas já principiavam a separar-se e a
dividir-se, no fundo, por crescente rivalidade que decorria do fato
de Portugal pretender continuar como metrópole, quando sua subsistência
dependia, na quase totalidade, dos recursos do Brasil, que não
admitia voltar ao status
de colônia. De
fato, os portugueses perceberam que, com a elevação do Brasil à
dignidade e proeminência de reino, Portugal, que dele
economicamente já dependia, terminaria
por ficar em posição política subalterna, se no Rio de Janeiro a
sede da monarquia permanecesse. E os decretos aprovados, então,
pelas Cortes de Lisboa não só visaram a degradar o Brasil do
predicamento de reino em igualdade com Portugal, como revelaram o
propósito de recolonização e restabelecimento do status-quo anterior a 1808, i. e., à abertura dos portos. Dúvida não
havia de que as Cortes continuavam com a intenção de restituir a
Portugal a supremacia política sobre o Brasil, tornando Lisboa como
único centro de poder. Os brasileiros e portugueses, que em 1821
juntos se levantaram, primeiro no Pará e na Bahia, e depois no Rio
de Janeiro, para exigir a Constituição, cindiram-se assim em dois
partidos rivais, cujos membros se diferenciavam pelo lugar de
nascimento. Nativistas, os brasileiros, e reinóis, os nascidos em
Portugal, antagonizaram-se, cada vez mais, a gerar choques armados
entre os soldados e marinheiros dos dois reinos em um clima de
crescente agitação e violências, a desenhar, na Bahia, o cenário
da guerra civil. Assim, a partir dos choques armados ocorridos em
Salvador, entre 18 e 20 de fevereiro, a idéia da separação dos
dois reinos - .Brasil e Portugal – avigorou-se.
D.
Pedro compreendeu,
naquelas circunstâncias, que o Brasil separar-se-ia de Portugal,
com ou sem a dinastia de Bragança e que, se ele não se colocasse
à frente da nação, perderia o trono. A independência
realizar-se-ia sob a forma de república. Por isto, mediante
consecutivos atos de rebeldia, tratou de conduzir o processo político,
de modo a assegurar a soberania e o direito do Brasil à
autodeterminação. Contudo,
em Salvador, ao ocupar
as ruas com tropas do exército e da marinha de Portugal, o
brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, comandante das armas,
impediu que a Câmara de Vereadores se reunisse, em 12 de junho de
1822, e respondesse à consulta, feita pelos representantes da Bahia
nas Cortes de Lisboa, sobre várias questões, entre as quais sobre
se convinha àquela província o estabelecimento no Brasil de uma
delegação do poder executivo, o que abria caminho para o
reconhecimento da autoridade e a aceitação da regência de D.
Pedro. Mas nada pode fazer para obstaculizar a manifestação do Recôncavo.
A vila de S. Francisco foi a primeira a pronunciar-se. No dia 13 de
junho, seu capitão-mor, Joaquim Inácio de Siqueira Bulcão, que
foi artífice político do movimento, lançou uma proclamação, em
que concitou os baianos a aclamar a regência de D Pedro, o que
estava acordado para realizar-se, simultaneamente, em todas as vilas
no dia 29 de junho de 1822, dia de S. Pedro, mas a vila de Cachoeira
precipitou-se e o fez a dia 25 de junho. Foi a partir do Recôncavo,
onde os senhores de engenho dominavam, que a resistência à
ditadura militar de Madeira de Melo então recresceu e, graças
a essas vilas e cidades, a campanha da independência tomou impulso,
na Bahia, impedindo que as forças portuguesas, acantonadas em
Salvador, segregassem aquela província do resto do Brasil. Eles
compunham os Senados das Câmaras de Vereadores e constituíam a
aristocracia militar, com o comando das milícias e das ordenanças,
a conservarem a tradição do antigo poder, adquirido na luta contra
os índios, os corsários e os invasores, pois desde os primórdios
da colonização dos engenhos tiveram dupla função, econômica e
militar, ou seja, de fábrica de açúcar e baluartes armados, como
o regimento levado por Tomé de Souza determinara. As
milícias da Torre de Garcia d’Ávila desempenharam aí um papel
decisivo no cerco de Salvador. Enquanto Joaquim Inácio de Siqueira
Bulcão acolhia e sustentava os emigrados da capital,
arregimentando-os e armando-os para a guerra de libertação da
Bahia. O tenente-coronel Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, o
coronel Santinho, foi o primeiro baiano que efetivamente mobilizou
um batalhão de nacionais, para os quais arregimentou, entre os seus
soldados, índios seminus, armados de arco e flechas, com experiência
de emboscadas, e em 18 de julho acampou em Pirajá, onde
bloqueou a estrada das Boiadas e por ali o gado, que
abastecia Salvador, descia do sertão, até do Piauí, para a Feira
de Capuame, e de lá desencadeou as operações de guerrilha contra
as forças portuguesas. Contou, naturalmente, com o apoio de seus
irmãos, o coronel Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque,
herdeiro do morgado da Torre, e Francisco Elesbão Pires de Carvalho
e Albuquerque, eleito presidente do Conselho Interino de Governo,
que se instalou na vila de Cachoeira, contrapondo-se à Junta Provisória
de Governo, existente em Salvador, e estabelecendo assim a dualidade
de poderes. E
essa iniciativa do tenente-coronel Joaquim Pires de Carvalho e
Albuquerque revestiu-se de enorme importância estratégica, pois,
estando a cidade de Salvador em uma península, banhada, de um lado,
pelo Atlântico e, do outro, pelas águas da Bahia de Todos os
Santos, ele assentou os dois batalhões da Torre na sua base, ou
seja, em Pirajá, uma colina, cercada, de um lado, por
matas, onde brejos e alagadiços não faltavam, e, do outro,
pela encosta que se projetava sobre as praias de Itacaranha,
Periperi e outras.
Conquanto
D. Pedro, em 7 de setembro de 1822, proclamasse a independência do
Brasil, a unidade do seu território continuou a depender do destino
da Bahia, que as forças portuguesas, acantonadas em Salvador, só não
conseguiram segregar do resto do Império, graças às vilas e
cidades do Recôncavo. Sem a resistência, que os senhores de
engenho, bem ou mal, empreenderam, levando as vilas do Recôncavo a
aclamarem a regência de D. Pedro e cortando os suprimentos de
Salvador, os contingentes comandados pelo general Pedro (Pierre)
Labatut, evidentemente, não teriam condições de vencer as forças
de Portugal lá concentradas. Sem as tropas auxiliares da Casa da
Torre, aquele general, enviado por D. Pedro, não encontraria, nos
outeiros que circundavam a Bahia, as primeiras linhas do sítio. Aliás,
o próprio Labatut reconheceu que lançara mão das mesmas posições
de defesa, em Itapoã e Pirajá, em que as brigadas da Torre se
achavam antes de sua chegada, por serem adequadas, e pelo
conhecimento que do terreno deles tinham seus defensores. Essas
primeiras linhas do sítio foram estabelecidas pelo tenente-coronel
Joaquim Pires de
Carvalho e Albuquerque, agraciado por D. Pedro, em 1826, com o título
de barão e, meses depois, visconde de Pirajá. Este título José
Honório Rodrigues, em sua obra Independência:
Revolução e Contra-revolução na Bahia,
afirmou que ele não merecia pois a vitória na batalha de
Pirajá, em 8 de novembro de 1822, “nada tem a ver com sua ação”,
pois fora “fruto da direção do general francês e do coronel
pernambucano Barros Falcão, sendo curta e sem destaque sua ação
militar”[15].
E, ao repetir pela terceira vez que o coronel Joaquim Pires de
Carvalho e Albuquerque fora “mais tarde premiado com o título de
visconde de Pirajá, embora pouco tenha a ver com a batalha de Pirajá”,
José Honório Rodrigues acrescentou: “a não ser com a posição
e o local muito antes do combate que singularizou seu nome”[16].
Entretanto, em outra passagem, reconheceu que o visconde de Pirajá
“foi quem chefiou o começo da luta com um corpo reduzido de
tropa, que se empenhou apenas em pequenos combates”, ressaltando
que ele “dirigiu na verdade uma guerrilha de 25 de junho a 27 de
outubro de 1822”, data em que o general Labatut chegou à Bahia[17].
Essas afirmativas de José Honório Rodrigues, denotando visível
esforço para desmerecer e menosprezar a atuação de Joaquim Pires
de Carvalho e Albuquerque, ao depois barão e visconde de Pirajá, são
evidentemente confusas e contraditórias, senão levianas. Elas
demonstram que ele ou não entendeu o que se passou na Bahia ou usou
de má fé, talvez levado por idiossincrasias pessoais, impróprias
em um historiador, tal a insistência – cerca de quatro vezes –
com que repetiu que Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque fora
“desmedidamente premiado”[18]
e não merecia o título de barão e visconde de Pirajá, como se a
homenagem a ele prestada fosse em decorrência da batalha de 8 de
novembro de 1822. Esta batalha ocorreu, exatamente, devido à ocupação
de Pirajá, que o tenente-coronel Joaquim Pires de Carvalho e
Albuquerque desde 25 de junho de 1822 empreendera, bloqueando a
estrada das Boiadas, e que constituiu uma operação decisiva, sob o
ângulo militar, por se
tratar de localidade estratégica, situada em uma colina e através
da qual Salvador recebia os suprimentos de carne e outros do Recôncavo
e dos sertões do Nordeste. Durante quatro meses, de 25 de junho a
27 de outubro, os contingentes comandados por Joaquim Pires de
Carvalho e Albuquerque realizaram, dali, inúmeras operações de
guerrilha, que na verdade foram o que José Honório Rodrigues
chamou de “pequenos combates”, e outra forma para enfrentar as
forças portuguesas então não havia. O próprio Accioli, contemporâneo
dos acontecimentos, ressaltou que Joaquim Pires de Carvalho e
Albuquerque fora “o primeiro a ocupar com guerrilhas aquele
terreno”, o alto de Pirajá,
tornando-o “o teatro do seu indelével patriotismo”[19].
Outro contemporâneo, Antônio
Pereira Rebouças, apontou o tenente-coronel Joaquim Pires de
Carvalho e Albuquerque como o “chefe das guerrilhas”[20],
que desde então fustigaram as forças portuguesas. Dúvida nunca
houve de que os batalhões da Torre, organizados na Feira de Capuame,
foram os primeiros a assediar a cidade de Salvador, sitiando-a, e a
“perseguir a gente de Madeira até as vizinhanças da Lapinha”,
conforme Braz do Amaral assinalou[21],
formando o fulcro das forças de libertação da Bahia, às
quais os contingentes, comandados pelo coronel Rodrigo Antônio Falcão
Brandão, José Antônio da Silva Castro, com o Batalhão de
Periquitos, Veríssimo Cassiano de Sousa, Antônio Bittencourt
Berenguer César, Manuel Marques Pitangas e tantos outros se
juntaram. O próprio Labatut,
na condição de marechal do Exército Imperial do Brasil, atestou,
sob a palavra de honra militar, que “o visconde de Pirajá
achava-se no comando em chefe das tropas brasileiras que sitiaram
esta cidade da Bahia quando cheguei no Recôncavo desta província
mandado por Sua Alteza Real para fazer que o general Madeira, e suas
tropas a desocupassem, e este no ano de 1822, sendo o mesmo excelentíssimo
visconde quem por seus esforços e acrisolado patriotismo havia
conseguido reunir e acampar em Pirajá as tropas brasileiras sob seu
comando”[22].
José Honório Rodrigues, que utilizou documentos da Divisão de
Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, ou pesquisou
mal ou ignorou propositadamente esse documento de Labatut.
Quanto
à batalha de Pirajá, travada em 8 de novembro de 1822, ela não
decorreu de qualquer operação militar empreendida por Labatut e
pelo coronel pernambucano José de Barros Falcão de Lacerda, que
haviam chegado à Bahia dez dias antes e tempo nem tiveram para
modificar a situação. Ela decorreu de uma ofensiva empreendida de
surpresa por Madeira de Melo, que recebera reforços de Portugal e
pretendeu romper o cerco, antes que
outros contingentes comandados por Labatut lá chegassem. E a
vitória não resultou da ação nem de Labatut nem do coronel José
de Barros Falcão de Lacerda, que, inclusive, foi quem deu a ordem
para o corneteiro Luís Lopes tocar a retirada. Neste caso, se a vitória
se deveu, especificamente, a alguém, este foi o corneteiro Luís
Lopes, porquanto não obedeceu a Barros Falcão e, ao invés de
tocar retirada, tocou “Cavalaria, avançar, à degola”, quando
viu chegar ao local do combate o piquete de cavalaria de Pedro
Ribeiro de Araújo, cujas operações de guerrilha, ao longo de
quatro meses, foram efetuadas sob o comando de Joaquim Pires de
Carvalho e Albuquerque. É preciso salientar também que Labatut e
Barros Falcão, com a brigada pernambucana, chegaram à Bahia de 27
para 28 de outubro, cerca de 10 dias antes da batalha de Pirajá,
estando até então todas as forças ali estacionadas sob o comando
do tenente-coronel Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, o que
demonstra a inconsistência e a falsidade da afirmação de José
Honrório Rodrigues de que pouco teve a ver com a batalha de Pirajá,
“a não ser com a posição e o local muito antes do
combate que singularizou seu nome”[23].
Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque esteve à frente das forças
brasileiras, que ocupavam Pirajá, e das operações de guerrilha, não
“muito antes do combate que singularizou seu nome”, como Honório
Rodrigues escreveu, mas durante quatro meses, até dez dias antes do
combate, quando passou o comando para Labatut, que o promoveu de
tenente-coronel a ajudante-general.
Labatut
não ficou no comando do exército libertador mais do que seis
meses. Homem de caserna, rude e sem a capacidade de percepção, não
compreendeu que, desde os primórdios da colonização, os senhores
de engenho ocupavam decisivo lugar na real
Machtverhältnisse (estrutura real de poder), em que a sociedade
na Bahia se assentava, e daí porque, a disputar a autoridade sobre
as milícias, aguçou o
dissídio com o Conselho Interino de Governo, que decerto concorreu
para sua deposição do comando, no qual o coronel José Joaquim de
Lima e Silva, comandante do batalhão do Imperador o substituiu. E o
que compeliu o general Madeira de Melo, à frente de suas forças, a
abandonar Salvador, na madrugada de 2 de julho de 1823, foi o estado
de calamidade ao qual o levante
do Recôncavo e o subseqüente cerco, paralisando todo o comércio,
reduziram aquela cidade, onde a penúria se agravou, dia a dia,
inclusive porque a chegada dos novos contingentes de soldados e
marinheiros aumentara enormemente a demanda de munição de boca.
Portugal, que, sem as rendas da Bahia, bem como do resto do Brasil,
rebelado por D. Pedro, nada mais efetivamente pode fazer para a
conservar. Destarte, a libertação da Bahia deveu-se, sobretudo, à
insurgência das vilas do Recôncavo e ao conseqüente cerco da
cidade do Salvador, fatos que determinaram, ao fim de um ano, a
expulsão de Madeira de Melo e suas tropas e impediram que Portugal
segregasse a Bahia e provavelmente grande parte do Nordeste do resto
do Brasil.
Com
toda a razão Francis W. O. Morton, a ressaltar que a vitória de 2
de julho de 1823 foi dos proprietários de terra do Recôncavo,
conceituou a guerra pela independência da Bahia como
uma “conservative
revolution”[24].
Com efeito, esses proprietários de terra, dos quais os senhores de
engenho constituíam o principal segmento, dissentiram de Portugal,
sublevando o Recôncavo e sustentando a luta pela separação do
Brasil, não para subverter, mas, exatamente, para o conservar o status-quo,
i. e., para defender a liberdade de comércio e a soberania do país,
alcançadas com a transferência da sede da monarquia para o Rio de
Janeiro, a extinção do regime colonial, resultante da
abertura dos portos em 1808, e a elevação do Brasil ao
predicamento de reino, em 1815. Destarte, como Kátia M. de Queirós
Mattoso salientou, o estado brasileiro
não nasceu ex nihilo e, sendo mais transformado do que criado, desenvolveu-se
como resultado da gestão patrimonial portuguesa conjugada com a
colaboração do poder privado, resultante das próprias circunstâncias
do processo de colonização[25]. Evidentemente, o fato de que o próprio príncipe D. Pedro,
ao colocar-se à frente da resistência à tentativa das Cortes de
Lisboa de restaurar o predomínio de Portugal, concorreu para
preservar a unidade desse estado, evitando decerto que o Brasil se
desintegrasse em várias repúblicas, mal constituídas e
turbulentas, tal como acontecera na América espanhola. Contudo, as
ameaças externas e internas à independência e à integridade
territorial do Brasil não se desvaneceram após 2 de julho de 1823.
A junta de governo, que se instalou em Salvador após a retirada das
forças portuguesas e cujos membros, três dos quais – Francisco
Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque, Joaquim Inácio de
Siqueira Bulcão e José Joaquim Moniz Barreto de Aragão – eram
fidalgos da casa real portuguesa e descendentes de Caramuru, lançou
uma proclamação, na qual revelou claramente essa preocupação, ao
declarar expressamente que cumpria aos brasileiros “manter a união
desde o Amazonas até o Prata”, e
“o sossego público, e interno em cada uma das províncias
que formam este rico Império do Equador”[26].
A
solidariedade da nobreza da terra, sobretudo na Bahia, com
a monarquia foi fundamental para conter as forças centrífugas
que as tendências republicanas e federalistas representavam, ameaçando
não apenas a forma regiminis,
mas também a integridade do Brasil e conseqüentemente sua forma imperii (forma de soberania), nos anos subseqüentes à separação
de Portugal. Os descendentes da Casa da Torre, que detinham, na
Bahia, a maior força política e militar entre os proprietários de
terra e senhores de engenho, empenharam-se na sustentação da
monarquia e da unidade territorial do Brasil. Entre eles, o visconde
de Pirajá foi o que
mais se destacou, nos anos subseqüentes à independência, ao
participar da repressão a quase todos os movimentos subversivos –
fossem revoltas de escravos ou levantes republicanos e federalistas
- que na Bahia pudessem ameaçar a estabilidade do governo imperial
e a integridade do Brasil. Em 1837, o visconde de Pirajá combateu
ainda a insurreição separatista, a célebre sabinada,
ocorrida em Salvador. Ao
contrário, porém, do que ocorrera com a
guerra dos farrapos, no Rio Grande do Sul, onde os senhores de
pastagens, os estancieiros, promoveram ou apoiaram a sublevação da
plebe rural, quando perceberam que o governo queria arrancar-lhes,
por meio da tributação, mais do que eles se dispunham a dar, a
insurreição de 7 de novembro de 1837, na Bahia, aguçou a contradição
entre as classes sociais. Tal como em 1822 acontecera, não
houvessem os senhores de engenho e outros proprietários de terra,
desde o início, tomado as primeiras medidas para bloquear a estrada
das Boiadas, a principal via de acesso terrestre a Salvador,
dificilmente, ou mesmo impossível, seria para a regência, ao mesmo
tempo que empregava todos os esforços para destruir, sem êxito, a
República Riograndense, sufocar o levante separatista deflagrado
naquela cidade da Bahia. Os
senhores de engenho do Recôncavo, os mesmos que sustentaram a luta
para expulsar as tropas portuguesas da Bahia, levantaram-se assim em
armas para novamente impedir a secessão da província e a fragmentação
do Império. A eles o vice-presidente do governo revolucionário, João
Carneiro da Silva Rego, em proclamação aos habitantes do Recôncavo,
referiu-se como “uma récua de desprezíveis e fofos
aristocratas”, que à custa do sangue e da liberdade do povo, “só
têm em vista a defesa dos seus lucros”[27].
Os senhores de engenho e outros proprietários de terra, no entanto,
possuíam
a consciência da nação (natio),
da sua integridade territorial, e não defendessem eles a realeza (corona
regis), que a unificava, a implantação da república, na
Bahia, implicaria a fragmentação do
Brasil, uma vez que o governo imperial não teria aí condições
de impedir a secessão do Rio Grande do Sul e outras províncias
seguir-lhe-iam o exemplo.
Àquele
tempo, a refletir os interesses da burguesia em ascensão e o
espraiamento da economia de mercado,
as tendências liberais e democráticas, que se aguçaram
desde a abdicação de D. Pedro, em 7 de abril de 1831, determinaram
várias reformas, que atingiram o direito de propriedade. A Lei n°
57, de 6 de outubro de 1835 proibiu o estabelecimento de morgados,
bem como de capelas e outros vínculos, e extinguiu os existentes.
Consideradas adversas à justiça e igualdade com que a herança
deveria ser repartida entre os filhos, e ao livre comércio dos
bens, as propriedades vinculadas à primogenitura, de corte
senhorial e feudal, não mais então puderam subsistir e o fim dos
morgadios condenou ao desaparecimento o senhorio sobre as terras e
propriedades conquistadas e pertencentes à Casa da Torre de Garcia
d’Ávila. Ao falecer,
em 1852, Antônio
Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, visconde da Torre e último
senhor e administrador do morgado, o domínio territorial da Casa da
Torre, dividido entre cinco herdeiros e onerado por dívidas,
fragmentou-se. Àquela época, toda a aristocracia rural da Bahia,
da qual a Casa da Torre constituíra a mais poderosa expressão,
começara igualmente a entrar em franca decadência.
Grave crise afetava a lavoura da cana, responsável pela
imensa riqueza dos senhores de engenho e eles não se adaptaram às
mutações ocorridas em conseqüência do desenvolvimento do
capitalismo, que, apagando os traços da economia colonial com a consolidação
de uma economia nacional, deslocava o eixo econômico do Nordeste
para o Sudeste, na medida em que o Brasil se transformava no
principal produtor mundial de café, cujas exportações mais e mais
aumentavam, estimuladas pelo crescente
expansão do mercado nos EUA.
St.
Leon, verão de 1999
[2]
Guinote
et alt., 1998, p. 137. “Durante
as caminhadas, os sobreviventes eram freqüentemente perseguidos
por indígenas, que os pretendiam roubar e, por vezes, mesmo,
matar. Boa parte das vezes, não ousavam meter-se diretamente
com os portugueses por causa das armas de fogo que estes possuíam”.
Id.
, ibid., p. 141.
[3] Fourquin,
1987, p. 117.
[4] Traslado
de uma petição de Francisco Dias d’Ávila com despacho ao pé
do juiz Antônio Castenheiro sobre as minas que vai descobrir,
5.1.1627, in Annaes do
Arquivo Público da Bahia, vol. XXIV,
p. 35.
[5]
Bertran,
1994, p. 46.
[6] Magalhães,
1935, p. 182.
[7] Cunha,
1995, p. 171.
[8] Antonil,
1965, p. 478.
[9] Melo,
1997, pp. 72 e 73
[10] Capistrano
de Abreu, 1954, p. 215.
[11] Cunha,
1995, vol. II, p. 174.
[12]
Suas fazendas, nos
vales do rio Piauí e Canindé, ele legou por morte à Companhia
de Jesus, de quem a Coroa de Portugal confiscou em proveito próprio,
em 1758, durante a
governação do marquês de Pombal, Sebastião
José de Carvalho e Melo.
[13] Cunha,
1995, pp. 172 e 173.
[14] Consulta
do Conselho Ultramarino, Lisboa, 14.3.1753. Marquês de Penalva,
Metello de Sousa et alt. AHU – Conselho Ultramarino – Brasil
– Bahia – 17.3.1753, Lisboa, cx. 113, doc. n. 8858.
[15] Rodrigues,
1975, 5° vol. , p. 145´e 161.
[16]
Id.,
ibid., p. 205.
[17]
Id.,
ibid., p. 229.
[18]
Id.,
ibid., vol. 2, 97.
[19]
Accioli,
vol. IV, 1933, p. 100.
[20] Rebouças,
Antônio Pereira – “Recordações Patrióticas – 1821 –
1822”, in Revista do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n° 48,
Salvador – Bahia, 1922, p. 468, n. 25.
[21] Amaral,
1957, p. 238.
[22]
A íntegra da Atestação
é a seguinte “Pedro
Labatut, Marechal Militar do Exército Imperial do Brasil, [dignatário]
da Imperial Ordem do Cruzeiro, condecorado com a medalha de ouro
da Campanha da Bahia, (__) General em Chefe do Exército
Pacificador Oficial da Legião de Honra da França, (etc).Atesto
sob a palavra de honra militar que o Exmº Visconde de Pirajá,
achava-se no comando em Chefe das Tropas brasileiras que
sitiaram esta cidade da Bahia quando cheguei no Recôncavo desta
província mandando por Sua
Alteza Real para fazer que o General Madeira, e suas
tropas a desocupassem, e este no ano de 1822, sendo o mesmo
Exmo. Visconde quem por seus esforços e
acrisolado patriotismo havia conseguido reunir e acampar
em Pirajá as tropas brasileiras sob seu comando que logo (___)
em fidelidade e obediência as ordens de Sua Alteza Real. Tendo
eu criado e organizado o exército pacificador [nomeei] ao dito
Exmº Visconde a guarda general em cuja qualidade o mandei de
minha parte e do exército a render homenagem ao mesmo (___) Príncipe
pela sua elevação ao Trono Imperial do Brasil com o nosso
Imperador e Defensor Perpétuo, e conquanto na [volta] de (___)
comissão (e meu exército) tivéssemos que perder sua pessoal
coadjuvação na continuação da Campanha, porque Sua Majestade
Imperial o nomeou Governador das
Armas da Província do Ceará, contudo enquanto se
preparou para seguir ao destino sempre se apresentava para (___)
como qualquer oficial do exército e continuou a fazer todas as
prestações de sua fazenda com a qual desfalcou sua [ingente]
fortuna, como foi e é de toda notoriedade. O que tudo é
verdade e por isso mandei escrever e assinar. Bahia, 14 de
setembro de 1848. a) Pedro Labatut. BN-RJ/DM.
C-43-7
(C-697,28).
[23]
Id.,
ibid., p. 205.
[24]
Morton,
1974, p. 401.
[25]
Mattoso,
1992, p. 253.
[26] Proclamação,
Palácio do Governo da Bahia, 30.7.1823, a) Francisco Elesbão
Pires de Carvalho e Albuquerque, presidente. – Joaquim José
Pinheiro de Vasconcelos, secretário. – Joaquim Inácio de
Siqueira Bulcão. – José Joaquim Moniz Barreto de Aragão.
–Antônio Augusto da Silva.
– Manuel Gonçalves Maia Bittencourt. – Felisberto Gomes
Caldeira. Ibid., p. 67, n. 31.
[27] Proclamação,
Palácio do Governo do Estado da Bahia, 21.11.1837, João
Carneiro da Silva Rego, ibid., p. 77 e 78.
Cientista
político, professor titular (aposentado) da Universidade de Brasília
e autor de várias obras, entre as quais "Formação do Império
Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque)",
que lhe valeu ser eleito pela União Brasileira de Escritores, com
o patrocínio da Folha, Intelectual do Ano 2005
Copiado de: http://www.espacoacademico.com.br/074/74liv_bandeira.htm
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