Os Mártires
O culto
O evento cultuado se deu em 1645, quando a
capitania do Rio Grande era um domínio holandês periférico. Enquanto em
Pernambuco desabrochava a cidade Maurícia, do Conde Renascentista, com
suas torres e sua atmosfera cosmopolita, nós permanecíamos, na
arquitetura e na mentalidade, uma decadente aldeia portuguesa com status
de cidade. O domínio holandês não era diverso do português,
continuávamos isolados. Mera Fortaleza permeada por casebres
amedrontados.
Antes de outubro, ainda em julho, ocorria
dentro da capela do engenho Cunhaú, o massacre que vitimara o padre
André de Soveral juntamente com 29 fiéis, em plena missa. O engenho
Cunhaú era o centro econômico da capitania, residia ali seu maior núcleo
populacional, apesar disso, era modesto em relação aos grandes engenhos
de Pernambuco. Havia uma considerável presença portuguesa na região do
engenho, tornando-o alvo prioritário para tapuias e brasilianos sedentos
por sangue lusitano.
Segundo Diogo Lopes Santiago, Jererera,
líder dos tapuias e filho do lendário Rei Janduí, foi o primeiro a
iniciar o massacre. Há elementos miraculosos que narram que os braços
dos indígenas que assassinaram o padre Soveral, após este tê-los
ameaçado com maldições, atrofiaram e foram despedaçados pelos próprios
indígenas vitimados pela raiva.
O imaginário que se criou em torno dos
mártires de Cunhaú se originou, em parte, pelo panfleto feito por Lopo
Curado Garro, que mescla o relato com elementos fantásticos: como uma
suposta música que ascendia para o alto, dando “certo pressagio que
foram os Anjos que acompanhavam as almas destes mártires para o Céu”.
Assim como uma mancha de sangue fresco que apareceu na sepultura do
padre Vigário Ambrósio Ferro, quinze dias após sua morte, que segundo o
panfleto dava “mostras bastantes, que o tal [padre] brada ao Céu
justiça”. Atestado também por Lopes Santiago, que afirma que após três
meses do ocorrido o sangue derramado pelas vítimas estava “tão vivo e
fresco como se naquela hora fora derramado”.
Após os massacres ocorridos no engenho
Cunhaú e, posteriormente, na casa forte de João Lostão Navarro, os
colonos portugueses da Capitania decidiram refugiar-se em um sítio
localizado na beira da Lagoa de Uruaçu, atual município de São Gonçalo
do Amarante, onde ergueram paliçadas e estocaram mantimentos.
Parte considerável das fontes primárias,
que são escassas, atribui o ocorrido à maldade desmedida e diabólica dos
indígenas e batavos, levando para o campo moral e religioso um conflito
de origem muito mais complexa. A forma como os tapuias guerreavam foi
intencionalmente associada, pelas autoridades locais, à forças
demoníacas e falta de humanidade, assim procurava-se legitimar a guerra.
O relato de alguns cronistas era parte integrante desse empreendimento.
A guerra
Os tapuias formavam um conglomerado nada
homogêneo, composto por diferentes etnias, culturas e costumes. A
denominação Tapuia foi arbitrariamente imposta a todos as tribos que não
falavam Tupi. O Tapuia era antes de tudo um anti-tupi.
Os holandeses estabeleceram forte relação
com os tapuias, principalmente com os Janduís, explorando o interior da
Capitania, ávidos pela esperança de encontrar prata e minerais
preciosos. Quando os batavos foram expulsos em 1654, as veredas que se
embrenhavam sertão adentro, foram utilizadas pelos colonos para
colonizar o interior.
Para as autoridades coloniais, desde
sempre, a guerra contra os tapuias era considerada justa. Provocava-se
intencionalmente um conflito apenas para suprir a demanda por
mão-de-obra de forma legal. A escravidão indígena tornou-se assim um
negocio lucrativo.
Os tapuias eram o maior empecilho para a
emergente economia pastoril que avança sertão adentro. O governador
geral Matias da Cunha convocou o capitão Domingos Jorge Velho, o mesmo
bandeirante que destruiu o Quilombo dos Palmares, para que este partisse
“com todas as forças que tiver sobre aquele bárbaro, e fazer-lhe todo o
dano que puder. Espero que não só terão todas as glórias de degolarem
os bárbaros, mas a utilidade dos que aprisionarem, porque por a guerra
ser justa resolvi em Conselho de Estado, que para isso se fez, que
fossem cativos todos os Bárbaros que nela se aprisionassem”.
Entre as tribos Tarairiús, a mais temida
pelos portugueses da Capitania eram os Janduís. Após assimilarem as
táticas e os equipamentos de guerra dos holandeses converteram-se em
exímios atiradores e cavaleiros. A rainha, em carta ao governador de
Pernambuco, esboça preocupação a respeito dos Janduís: “… por terem já
muita quantia de cavalos em que se exercitam como doutrinação que lhes
deixaram os holandeses”.
Os Janduís tornaram-se peritos em
cavalos, superando em alguns casos os próprios vaqueiros, ameaçando a
expansão dos pastos sertão adentro. Como relata o conde Miranda Andrada à
rainha de Portugal, em 1659 “e hoje se vão fazendo poderosos, por terem
muita criação de éguas, e com qualquer disciplina nos poderão fazer
muito dano”.
Várias nações indígenas adquiriam armas
de fogo através de transações com piratas estrangeiros. Como afirma
Matias da Cunha, em carta de 1688 ao bispo governador de Pernambuco:
“Uns afirmam que os navios de Piratas que por vezes entravam o Rio Açu
(navegável de embarcações maiores por distância de oito léguas em cujas
ribeiras havia de uma e outra parte muitos currais de gado) comerciando
com tapuias Janduís lhe deram as armas e munições com que pelejam: e
outros, que tendo o mesmo comércio com eles o Capitão-Mor da Fortaleza
do Ceará, lhe dera pólvora, e munições que ainda lhe duram.”
Os colonos, assustados pelos roubos e
massacres, debandaram-se para as capitanias vizinhas, fazendo com que os
tapuias dominassem um vasto território da Capitania. Em Natal a pena
para quem fugisse era a prisão e o confisco dos bens. Os que restaram
erguiam casas fortes improvisadas com paliçadas para defender-se. O
capitão-mor Pascoal Gonçalves emitia apelos desesperados aos governos da
Paraíba, Pernambuco e Bahia. E mesmo com reforços vindos da Paraíba e
Pernambuco, os tapuias já se aproximavam de Ceará-Mirim, a apenas cinco
léguas da capital. Nesse momento do conflito, a Capitania estava a um
passo de ser conquistada pelos indígenas.
Em carta do Senado da Câmara de Natal,
dirigida ao Rei, contabiliza-se um prejuízo de duzentos colonos mortos e
trinta mil cabeças de gado, além de mil cavalos. O prejuízo econômico
para a Capitania foi imensurável.
Os mártires
A Capitania do Rio Grande abrigava a
maior concentração de Tarairiús da colônia, tendo como epicentro a
região de Açu, onde viva a tribo dos Janduís. De acordo com Câmara
Cascudo, o nome Janduí – que em tupi significa aranha pequena – teria
derivado da palavra Nanduí, que significa ema pequena. Durante a invasão
holandesa à Capitania do Rio Grande, época em que os Janduís eram os
principais aliados dos holandeses, o brasão da Capitania era
representado por uma Ema.
Leia mais aqui: Janduí: o primeiro rei do Sertão
Janduí tinha 50 mulheres e 70 filhos,
viveu mais de 100 anos. Dificilmente faziam casas, seu acampamento
sempre era transitório, sendo queimado após abandonado. Dormiam ao
relento, na terra, sem nada por baixo do corpo. Não andavam a noite
devido ao perigo das cobras. Seu nomadismo fazia com que percorressem
grandes distâncias, difundindo sua influência espacial por grande parte
do nordeste brasileiro.
O filho de Janduí, Canindé, após a
expulsão dos holandeses e um risco iminente de extinção de sua tribo por
parte dos portugueses, rende-se e assina uma trégua. Diante de uma
situação de extermínio, os Janduís souberam com muita destreza garantir
diretamente com a Coroa Portuguesa um acordo de paz único na história
brasileira, obtendo o reconhecimento de reino autônomo, vassalos diretos
do próprio El Rei.
Ao Rei interessava manter sob controle
essa lendária e temida casta de guerreiros que podia ser-lhe útil contra
outros índios. Utilizando uma estratégia que fora bem sucedida na
África, de acirrar conflitos entre grupos indígenas locais.
A partir de então, a guerra passaria a
ser de extermínio. Não importa mais se iriam ser mortos, escravizados,
ou gerariam caboclos, os tapuias deveriam desaparecer. Sentimento
compartilhado por autoridades coloniais e religiosas. O frei Manoel da
Ressureição, por exemplo, contra as ordens do Rei, coagia os colonos a
não “esperar defensivamente nos Arraias“, mas sim, seguir os indígenas
“até lhes queimarem e destruírem as Aldeias, e eles ficarem totalmente
debelados, e resultar da sua extinção, não só a memória, e temor do seu
castigo, mas a tranquilidade, e segurança com que Sua Majestade quer que
vivam, e se conservem seus vassalos, como por tão duplicadas ordens tem
recomendado a este Governo”.
Em carta de janeiro de 1699, D. João de Lencastro, clama ao capitão-mor da capitania, Bernardo Vieira, para que este conceda
“ao Mestre de Campo todos os que lhe pedir para a dita conquista, em
que Vossa Mercê há de por todas as forças, para que aqueles Bárbaros
fiquem extintos de todo.” O resultado não foi nenhuma surpresa, os que
não foram mortos foram aldeados, como os Ariús, uma tribo Tarairiú,
perseguidos sertão adentro, foram reduzidos em um aldeamento chamado
Capina Grande. Para realizar o empreendimento contrataram os melhores
mercenários que haviam na colônia, os paulistas.
Na missa de beatificação, o então Papa e
futuro Santo João Paulo II, nos lembrou que os mártires da Capela de
Cunhaú pertenciam a uma geração de mártires que regaram o solo para a
geração de novos fiéis. O mártir é aquele que tem fé, aquele que
acredita. Morre pelo que acredita porque não poderia agir de outro modo.
Em todo o sertão os Tarairiús morreram. Secos pela luta e pelo sol
podem até não ter regado o solo em que tombaram, mas regaram a alma e o
corpo do nordestino com força e destreza. Sua morte gerou fiéis,
cangaceiros, jangunços, profetas, todos igualmente crentes. Sua morte
gerou Canudos.
Na aridez da caatinga, no rastro dos
Tarairiús, surge à civilização do couro, com ela um novo homem, meio
tapuia, meio negro, meio beduíno, completamente nordestino. Esse homem,
posteriormente, viria a construir e povoar todo um país.
FONTE: http://tuliomadson.com/2014/01/10/os-martires/
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