Brasil Colonial: divergência entre o escravismo indígena e o africano.
Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume ago., Série 23/08, 2011, p.01-05.
“Liberte-se da escravidão mental,
Ninguém além de nós pode libertar nossas mentes
Não tenha medo da energia atômica,
Porque eles não podem parar o tempo
Por quanto tempo vão matar nossos profetas?
Enquanto nós permaneceremos de lado olhando
Huh, alguns dizem que é apenas uma parte disto
Nós temos que cumprir inteiramente o Livro”.
Bob Marley - Canção de Redenção
Durante
o período escravista ocorrido no Brasil colônia, a utilização da
mão-de-obra do escravo negro foi mais intensa comparada a do escravo
indígena.
No imaginário popular, essa relação se deu pelo fato do índio ser de uma “raça” [1] mais preguiçosa e menos resistente do que o negro.
No
entanto, não podemos negar que o tratamento com o indígena foi
diferente do tratamento com o africano, mas isso ocorreu diante de
diversos fatores sociais e biológicos que em nada tem a ver com esse
estereótipo.
Os
interesses econômicos da Coroa Portuguesa, a partir de meados do século
XVI, passam a integrar efetivamente o Brasil no projeto comercial como
um território que deve ser investido, e não mais apenas como um ponto de
abastecimento aos navios que navegavam ao longo da África e do Oriente.
Sendo
assim, para a intensificação da produção açucareira no território
brasileiro era preciso empregar a força de trabalho escravo nos
engenhos.
E,
para isso, não seria mais fácil utilizar a mão-de-obra “da gente da
terra” ao invés de buscar africanos do outro lado do continente?
Na
teoria, a resposta imediata seria “sim!”, porém, mesmo sendo mais
acessível, a escravidão indígena sobrepõe alguns pontos que devem ser
levados em consideração.
O trabalho compulsório indígena.
Ao contrário dos povos africanos, as comunidades indígenas não utilizavam a prática escravista como um comércio.
Como Alencastro (2000, p.118) demonstra:
“O
fato é que nenhuma comunidade indígena se firmou no horizonte da
América portuguesa como fornecedora regular de cativos aos moradores.
Como escrevem os autores de um incisivo estudo sobre a questão, a guerra
tupinambá, fundada essencialmente na vingança – na morte do inimigo –
não se enquadrava num processo de reprodução social mais amplo. Para
converter os indígenas em fornecedores de escravos, carecia transformar
sociedades de coleta e de caça em sociedades predadoras de homens”.
Assim,
nenhuma comunidade indígena fornecia cativos regularmente aos
portugueses, como acontecia nas redes internas de tráfico na África.
A cultura indígena era baseada essencialmente na vingança e, dessa forma, a captura do inimigo não tinha fins lucrativos.
Ao contrário dos povos africanos, que construíam reinos estruturados com base no comércio negreiro com os estrangeiros.
Ainda segundo Alencastro, autor da obra O trato dos viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul,
as leis editadas pela Coroa Portuguesa estabeleciam três tipos de
apropriação dos indígenas: os resgates, os cativeiros e os descimentos.
Os resgates consistiam na negociação de índios prisioneiros.
Assim quem os comprasse da tribo rival além de livrá-los da morte teria o direito de utilizar seus trabalhos em até dez anos.
Os
cativeiros eram índios obtidos através de uma “guerra justa” entre
certas etnias, esses prisioneiros se tornavam escravos por toda a vida.
Os
descimentos referiam-se ao deslocamento forçado dos índios para
aldeamentos estabelecidos pelos europeus, onde os índios eram misturados
e assentados, na maioria das vezes com o objetivo de proteção dos
portos contra os estrangeiros (holandeses e ingleses principalmente) e
dos ataques dos índios do interior que eram contra a ocupação
portuguesa.
Quando libertos, os índios desses aldeamentos só podiam ser utilizados mediante a obtenção de um salário.
Apesar
da existência dessas leis, o colonato abusava da utilização do trabalho
indígena ignorando os direitos dados a eles pelo reino e pelo
cristianismo.
Por
este motivo, a mão-de-obra escrava indígena era comumente utilizada e
os seus direitos eram negados, sendo apenas formalmente livres.
Porém,
a permanência destes nos cativeiros e aldeamentos se tornou um problema
para os colonos, pois eles costumavam fugir com facilidade devido ao
conhecimento que tinham das regiões.
Outro problema recorrente era o pagamento do salário dos índios alugados e a própria escassez dos mesmos.
Já
os escravos africanos sempre foram legitimados como posse, como um bem
adquirido pelo comprador que poderia utilizá-lo como bem o quisesse.
Os problemas do trabalho indígena: as questões religiosas e biológicas.
Desde a “descoberta” do Brasil pela frota de Cabral em 1500, a
percepção que os portugueses tinham dos nativos era a de um povo
ingênuo, livre de pecados, mas que por terem hábitos “estranhos”
precisavam da salvação através da fé católica.
Como
Pero Vaz de Caminha aponta na carta do descobrimento enviada ao rei
português D. Manuel: “(...) Contudo, o melhor fruto que dela [a terra]
se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar” [2].
Assim,
a expansão comercial marítima portuguesa, que visava lucros para a
Coroa, tinha também como objetivo a propagação da fé católica.
E no período colonial essa propagação deveria se estender aos índios de todo o território brasileiro.
Sendo
assim, a Igreja Católica defendia os índios porque acreditava que estes
possuíam almas, e que por se tratarem de pessoas “puras”, que andavam
nuas sem nenhuma maldade, precisavam ser ensinados e doutrinados dentro
da religião cristã.
Os negros, por sua vez, tinham as suas religiões severamente reprimidas.
Dessa forma, o trabalho escravo indígena utilizado por muitos colonos encontrava forte oposição dos clérigos.
Por
outro lado, a compra dos africanos trouxe um grande benefício para os
senhores de engenho, pois trazidos da distante África não teriam chance
de voltar às suas terras e estariam assim presos a uma nova terra
totalmente desconhecida.
E
a união de escravos negros para o planejamento de fugas seria também
muito difícil já que muitos eram oriundos de tribos diferentes.
Outro
fator relevante que facilitou a escravidão negra foram as freqüentes
doenças que muitas vezes provocavam a mortandade dos nativos.
A
derrubada do mato e o avanço dos canaviais facilitaram a proliferação
dos mosquitos e das febres; a má alimentação e o contato com negros e
europeus também contribuíram para ampliar a instauração de doenças, bem
como a introdução de bois, cavalos e outros animais domésticos que
transmitiam sarampo, gripe, bicho-de-pé, brucelose e varíola bovina até
então desconhecidas pelo organismo indígena.
Entretanto,
muitos africanos haviam adquirido imunidade às doenças. Sendo assim,
“(...) mais baratos que os africanos, os índios escravos acabavam saindo
mais caros porque morriam em maior número” (ALENCASTRO, 2000, p.137).
Dessa
maneira, a mão-de-obra africana era mais rentável, principalmente para
os senhores de engenho que precisava de uma força de trabalho maior na
lavoura.
A
descoberta do ouro permitiu também que muitos senhores enriquecessem e
pudessem assim abandonar o difícil trabalho de conseguir e manter índios
nos cativeiros e passaram a comprar africanos.
Assim, os entrepostos comerciais localizados no litoral africano passaram a intensificar o tráfico negreiro para a América.
Medida
que favoreceu o governo português, ampliando o controle metropolitano
sobre a colônia, pois, a partir disso, os senhores de engenho passam a
depender do tráfico negreiro (liderado pelos comerciantes portugueses)
para obter escravos africanos.
Concluindo.
A
partir disso, podemos concluir que a introdução de escravos africanos
no Brasil serviu para aumentar a produtividade da economia colonial.
Pois,
ao contrário dos africanos, os índios tinham as sua resistência abalada
pelas doenças trazidas pelos estrangeiros, e isso acabava fazendo-os
menos adeptos ao trabalho escravo (talvez daí tenha surgido a sua fama
de preguiçoso).
Outros
fatores que agravavam o escravismo indígena era o conhecimento que o
índio tinha do território, aumentando assim a probabilidade de fuga, e a
relativa proteção que Igreja Católica dava aos nativos.
A
prática da utilização da mão-de-obra escrava indígena esbarrava também
na dinâmica do capital mercantil, que tinha como base o tráfico
negreiro.
E
a questão da falta de população para povoar o território brasileiro e
concretizá-lo como posse portuguesa foi resolvida pela implantação dos
negros na terra, pois a Europa estava com um déficit populacional devido
à peste.
Assim, o território brasileiro era povoado e isso evitava as ameaças que os invasores faziam para a Coroa portuguesa.
E para a Igreja, a evangelização dos índios também se mantinha sem ameaças com o escravismo africano.
Dessa
forma, a escravatura no Brasil foi marcada pela complexidade nas
relações entre dominadores e dominados e pelo conflito de interesses.
Os
lucros do contrabando de famílias inteiras transformadas em escravos
contribuíram para o sucesso econômico dos impérios coloniais, que apesar
de toda a sua religiosidade não hesitaram em comercializar e se
beneficiar do trabalho compulsório negro.
São
evidentes as conseqüências dos maus tratos recebidos pelos escravos,
pois mesmo quando já estavam livres do destino de escravidão no Brasil, a
dolorosa experiência que tiveram jamais se apagará com o tempo.
E
a condição de selvagens caracterizada pela inferioridade em relação ao
branco se manteve no preconceito da sociedade, e até mesmo hoje em dia
podemos ver os reflexos e a predominância desse preconceito em diversas
situações do cotidiano.
Entretanto,
a contribuição dessas duas etnias (não excluindo os portugueses) foi
essencial tanto para a formação da população da época quanto para a
formação da nossa cultura.
Percebendo
isso, a noção de hierarquia entre "povos, cores e credos" não fará mais
sentido nenhum, principalmente para os jovens da nossa sociedade que
têm dificuldade em aceitar o outro, em aceitar tudo o que lhe é
diferente.
Para saber mais sobre o assunto.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes – formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion. “Algumas polêmicas teóricas e interpretativas” In: A Afro-América: a escravidão no novo mundo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. 7 ed. São Paulo: DIFEL, 1985.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
PRADO JR., Caio. “Sentido da Colonização” In: Formação do Brasil contemporâneo (Colônia). São Paulo: Brasiliense, 1976.
PRADO JR., Caio. “Caráter Inicial e Geral da Formação Econômica Brasileira” In: História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Texto: Profa. Adriana Costa.
Licenciada em História pelo Centro Universitário Metodista do Sul IPA.
[1] O atual conceito utilizado é etnia, que tem como objetivo evitar preconceitos e a noção de hierarquia entre os povos e as diferentes manifestações culturais.
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