Como surgiu o termo "BAITOLA"
Por Heitor Feitosa Macêdo
FONTE: http://estoriasehistoria-heitor.blogspot.com.br/2013_07_09_archive.html
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Às vezes uma palavra é suficiente para denunciar um costume
secular, escondido entre práticas completamente adversas, contrárias,
antípodas, em negativas subconscientes de certos hábitos. É exatamente nesse
contexto que se põe o termo “baitola”, frequentemente propalado pelos sertões nordestinos.
Essa designação é comum no Ceará, o que não significa que
tal expressão tenha sido gestada unicamente nessa parte do Nordeste, pois se
observa o uso desse vocábulo também em regiões circunvizinhas. Além disso, a
etimologia aponta relativa generalidade do termo no território brasileiro.
Somando-se a tudo isso a antiga e frequente prática da homossexualidade.
Num retrospecto bíblico encontra-se desabrida condenação à
prática do coito anal, tendo Deus aspergido uma chuva de enxofre sobre Sodoma e
Gomorra, matando seus habitantes carbonizados. Pobres sodomitas que morreram
pelo amor e pelo "mau" uso de seus orifícios! Então, num mundo sustido na
religião monoteísta, pela qual o Ocidente fora dominado, é bastante natural a
aplicação de sanções a esse “nefando pecado”.
Porém, para que não se perca, voltando mais um pouco no
tempo, veem-se os gregos e romanos, gente que gozava da virilidade de mancebos
enquanto escrevinhavam seus tratados de filosofia. Esses cultores de rapazes do
mesmo sexo legaram aos tempos modernos inestimáveis compêndios científicos, que
por muito tempo foram suprimidos pela Igreja, pois, afinal, tratavam-se de
ideias criadas em seio politeísta.
O homem quinhentista, ao desembarcar na terra de pindorama
(terras das palmeiras, como era chamado o Brasil pelos índios), trazia em sua
bagagem os mesmos tabus da Idade Média, temendo o fogo da inquisição pela
impudicícia.
Essa sociedade “genitalizada” e teoricamente monogâmica
disseminou-se pelos sertões, incluindo os do Nordeste. A família formava a
célula desse corpo social, cabendo ao pater
familias decidir sobre os destinos da sua propriedade, ou seja, além dos
bens imóveis, a mulher, os filhos e os escravos.
Ao patriarca era dado o desfrute de possuir “de fato”
quantas mulheres lhe aprouvesse, impondo-se a monogamia unicamente à classe
feminina. Quantos aos filhos, cabia também ao chefe da família escolher-lhes a
sorte, mesmo aos rebentos varões, ditando qual seria assexuado, seguindo a vida
sacerdotal; e reservando às filhas casamentos escolhidos, geralmente,
entregando-as ainda pré-adolescentes a outros velhos ricos.
Rodeado de mulheres escravas, negras ou índias, incluindo-se
as cunhãs surripiadas das aldeias pelas chamadas guerras justas, o patriarca
geria verdadeiro harém. Muitos ficaram célebres por esse seu poder procriador,
havendo destaque para Jerônimo de Albuquerque, apelidado de o Torto, por perder
um olho em luta com os índios. Esse indivíduo teve 26 filhos, por isso ser
também chamado de o “Adão pernambucano”[1].
Jerônimo de Albuquerque viveu maritalmente com a índia Maria
do Espírito Santo Arco Verde (filha do cacique Ubiraubi - Arco Verde), nascendo
dessa união Catarina de Albuquerque (a Velha), a primeira filha do casal e a
mais amada pelo pai.
Catarina casou-se com um fidalgo florentino, Felipe de
Cavalcante, que havia migrado da Itália por sofrer perseguição da poderosa
família Médice.[2]
Então, veio ele residir na Capitania de Pernambuco, deixando numerosa prole, da
qual descende quase toda população nordestina, não sendo exagero afirmar que a
maioria das famílias brasileiras possui alguma gota de sangue desse notável
patriarca.
Esses descendentes de
Felipe e Catarina se lançaram ao sertão, espalhando-se pelos quatro ventos, e legando à atualidade as populações
desses rincões. Destaque-se que os Cavalcante desmembraram-se em outras
famílias, quase sempre aristocráticas, as quais, por muito tempo, ostentaram
riqueza e valentia, inclusive no semiárido.
Porém, contrastando com o estereótipo sertanejo, Felipe
carregava hábitos discrepantes aos institucionalizados pela tradição dos rudes
moradores da caatinga. Isso pelo fato de o dito fidalgo ser acusado perante o
Tribunal do Santo Ofício por sodomia, sendo denunciado por Belchior Mendes de
Azevedo.[3]
A sodomia era tratada por “pecado nefando”, e os dicionários
mais antigos não a especificam, simplesmente registrando sua significação da
seguinte forma: “Pecado, por antonomásia, nefando, e por consequência indigno
de definição por sua torpeza”.[4] Mas,
o que seria nefando?
Segundo o velho dicionário de Bluteau, nefando é coisa
indigna de exprimir com palavras, coisa da qual não se pode falar sem vergonha.
O mesmo autor remete o pecado nefando, o de sodomia, ao demônio Incubo ou
Sucubo, que ora serve de homem, ora de mulher.[5] Mas,
como é sabido, trata-se da conjunção sexual anal, entre homem e mulher ou entre
dois homens.
Diz Gilberto Freyre[6]
que os filhos família (filhos dos fazendeiros) muitas vezes iniciavam sua vida
sexual com os moleques (filhos dos negros escravos), companheiros de
brinquedos, sendo estes também chamados de “leva pancadas”, pois,
frequentemente, eram vítimas de brincadeiras sádicas dos senhorzinhos.
Ressalte-se a miscigenação do “tipo brasileiro”, já que é
eticamente errado falar em raça, uma verdadeira mistura de brancos, negros e
índios, sendo que estes últimos (os ameríndios) também não ficaram alheios à prática do amor
sáfico ou socrático, ou seja, entre eles também houve homossexualismo.
Os indígenas estavam organizados uma em sociedade
“gerontocrática” [7],
onde os mais velhos exerciam influência sobre as deliberações do restante da
tribo. E, sendo a guerra uma constante entre aqueles povos, o homem adulto era mais
valorizado do que as crianças e mulheres.[8] A
masculinização era uma necessidade.
Em regra, os chefes tupis possuíam mais de uma mulher,
registrando-se 13 esposas para Cunhambebe e 34 para Amendua.[9]
Entretanto, essa virilidade era posta a prova durante o desenvolvimento dos
indivíduos mais jovens, que passavam de mitã a culumim-mirim, depois a
culumim-guaçu,[10]
até chegar a avá e tujuáe.[11]
Nas fases iniciais, os jovens eram postos em compartimentos
privativos aos homens, onde passavam por rituais secretos. Esse ambiente era
chamado de “Baito”, que, segundo Gilberto Freyre, era “uma espécie de lojas de
maçonaria indígena”.[12] Os índios praticavam a pederastia sem ser por
escassez ou privação de mulher, quando muito, pela influência do período de
internato nessas casas secretas.[13]
Entre os gentios do sexo masculino, deitar com as tias,
irmãs e filhas não lhes causava nenhum embaraço, e muito menos os constrangia
copular com outros machos. Sobre essa luxúria, diz Gabriel Soares de Sousa que
muitos índios morriam exaustos de tanto fornicarem, além disso, eles aumentavam
o órgão fálico com os pelos de um bicho peçonhento, tornando suas genitálias inchadas
e disformes, ademais, assevera o autor que alguns valentes índios se gabavam
por se servirem de outros homens, havendo nos sertões “alguns que têm tenda
pública a quantos os querem como mulheres públicas”.[14]
Frise-se que a homossexualidade não se restringia aos
homens, existindo também mulheres que faziam as vezes de varões, como fora
observado por Gandavo[15]:
Algumas
índias a que também entre eles determinam de ser castas, as quais não conhecem
homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as
matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem
seus ofícios, como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma
maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e flechas, e à caça
perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve,
com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e
mulher.
Muitas etnias ameríndias habitaram o território cearense,
inclusive os tupis, sob o nome de Tabajaras, moradores no litoral da Capitania.
Outro tanto de índios residia no interior, chamados genericamente de tapuias,
ou seja, contrários aos tupis, índios bravios ou de língua travada (que não
falavam a língua geral, o tupi-guarani), figurando entre eles os Cariús, Jenipapos, Cariris, Jucás, Icós, Canindés etc.
O intercurso racial resultou numa aculturação, isto é, na
formação de uma cultura híbrida, sendo a palavra “baitola” uma dessas
reminiscências. Algumas versões folclóricas tentam explicar o étimo de tal
expressão, contudo, terminam em suposições jocosas e insustentáveis.
Em
verdade, “baitola” ou “baitolo” deriva do termo indígena supramencionado, “baito”,
recinto reservado aos jovens, com o acréscimo do sufixo “la” ou “lo”,
certamente um hibridismo provindo da língua portuguesa, pois a fonética
gentílica desconhecia o som da letra “l”. Cabe destacar que uma variante tupi
para baito é “baité”, desmembrando-se em “mbaé”, aquele que é, e “ité”, frio,
discordante.[16]
No
Ceará, ainda hoje, também é comum ouvir-se o termo “baitinga”[17],
cuja etimologia concerne a “baito”, com o acréscimo de “tinga” (branco), constituindo outra remissão
índia aos indivíduos homoafetivos de cor branca.
Talvez
a discussão a respeito da etimologia de uma palavra dessa natureza pareça algo
insignificante. Porém, representa uma das principais consequências do etnocídio
acometido aos povos indígenas, pois o uso da língua bugre fora veemente
proibido, inclusive em muitas aldeias, e oficialmente banido pelo Marquês de
Pombal em 1758.
É necessário dizer que uma palavra pode ir
além das definições aduzidas pelos dicionários, como a expressão em comento,
que ultrapassa a sua literalidade jocosa e discriminante, para alcançar
importantes fatos históricos, a partir de sua etimologia e da variação
semântica no decorrer do tempo.
Desta feita, vê-se que, talvez, inexista brasileiro que não
possua um “gay” na família, mesmo que seja um tataravô da era colonial. Não
ficando de fora os brancos, nem mesmo os negros, e quanto aos índios, são estes,
indubitavelmente, os precursores dos baitolas de verdade.
A outra versão diz o seguinte:
A palavra "baitola" surgiu no Ceará, nas primeiras décadas do século 20, por volta de 1913, quando chegou ao
Ceará o inglês de nome Francis Reginald Hull, o conhecido Mr. Hull
(pronuncie-se mister ráu), que deu o nome a uma famosa avenida na cidade
de Fortaleza-CE. Mr Hull fora designado
superintendente de uma Rede Ferroviária no Ceará e passou, em muitas
situações, a fiscalizar algumas obras de construção e reparo na própria
Ferrovia.
Mr Hull era homossexual
assumido. Quando ia pronunciar a palavra "bitola", que significa a
distância entre dois trilhos, pronunciava "baitola". Quando ele se aproximava de onde
estavam os trabalhadores, estes, que não gostavam do modo como eram
tratados pelo chefe, diziam: "Lá vem o baitola, lá vem o baitola". A partir daí passou-se a associar a palavra baitola ao homossexualismo.
BIBLIOGRAFIA:
Bluteau,
D. Raphael, Vocabulario Portuguez e
Latino, Coimbra/Portugal, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712.
Clerot,
Leon F.R., Glossário Etimológico
Tupi/Guarani, 1ª Reimpressão, Brasília - DF, Edições do Senado Federal,
2011.
Fernandes,
Florestan, A função social da guerra na
sociedade tupinambá, São Paulo, Editora Globo, 2006.
Fonseca,
Antônio José Vitoriano Borges da, Nobiliarquia
Pernambucana, Volume I, Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro, 1935.
Freyre,
Gilberto, Casa – Grande & Senzala,
18ª Ed., Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1977.
Gandavo,
Pedro de Magalhães, Tratado da Terra do
Brasil, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2008.
Seraine,
Florival, Revista do Instituto do Ceará, Tomo LXIV, Ano 1950.
Sousa,
Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do
Brasil em 1587, São Paulo, Ed. Hedra, 2010.
[1] Freyre, Gilberto, Casa – Grande
& Senzala, 18ª Ed., Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1977, p. 278.
[2] Fonseca, Antônio José Vitoriano
Borges da, Nobiliarquia Pernambucana, Volume I, Rio de Janeiro, Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1935, p. 208.
[3] Freyre, op. cit., p. 321.
[4] Bluteau, D. Raphael, Vocabulario
Portuguez e Latino, Coimbra/Portugal, Collegio das Artes da Companhia de Jesu,
1712, p. 688.
[5] Ibidem, op. cit., p. 698.
[6] Freyre, op., cit., p 50.
[7] Fernandes, Florestan, A função
social da guerra na sociedade tupinambá, São Paulo, Editora Globo, 2006, p. 204,
190 e 289.
[8] Ibidem, op. cit., p. 206.
[9] Ibidem, op. cit., p. 271.
[10] Ibidem, op. cit., p. 196 e 197.
[11] Ibidem, op. cit., p. 188 e 189.
[12]
Freyre, op. cit., p 118 e
p. 136.
[13] Ibidem, op. cit., p. 119.
[14] Sousa, Gabriel Soares de,
Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo, Ed. Hedra, 2010, p. 299.
[15] Gandavo, Pedro de Magalhães,
Tratado da Terra do Brasil, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2008, p.
136.
[16] Clerot, Leon F.R., Glossário
Etimológico Tupi/Guarani, 1ª Reimpressão, Brasília - DF, Edições do Senado
Federal, 2011, p. 87.
[17] Seraine, Florival, Revista do Instituto
do Ceará, Tomo LXIV, Ano 1950, p. 10.
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