A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA GUIA, DO ACARI E SEU PRIMEIRO VIGÁRIO


José Ozildo dos Santos


Em idos de 1725, o sargento-mor Manoel Esteves de Andrade, oriundo da capital paraibana, fixou-se no Acari, após adquirir o sítio ‘Saco dos Pereiros’, por compra feita ao seu parente Nicolau Mendes da Cruz. Sentindo-se só, aquele desbravador (que era solteiro), freqüentemente chamava sua mãe para residir com ele no Seridó. Esta, muito católica, explicava ao filho que somente se deslocaria para aquele sertão inculto, quando existisse nas proximidades de sua fazenda uma capela, onde pudesse professar sua fé cristã.
Assim, em 1736, visando atender ao pedido de sua genitora, Manoel Esteves endereçou uma petição a dom José Fialho, Bispo de Olinda, a cuja diocese era subordinado o território norte-riograndense, solicitando autorização para erigir uma capela, no lugar chamado ‘Acari’, recebendo, no final, a devida:

“Ilustríssimo senhor. Dis o Sargento Mor Manuel Esteves de Andrade morador no districto do curato de Piancó que elle pretende erigir hua capella com a invocação de N. S. da Guia, no lugar xamado Acari districto do dito curato, para o fim de sua alma e dos mais moradores circunvizinhos, por ficarem distantes de sua Matriz oito dias de viagem, para cujo fim tem junto muita pedra, lhe fez a escritura do patrimonio que apresenta em meia legoa de terra que rende todos os annos de arrendamento deis mil reis, os quais aplica p.ª os paramentos, reparação, fabrica da dita capella por tanto pide a vossa Illustrissima lhe faça mercê atendendo ao muito serviço de Deos que se seguirá com a erecção desta capella conceder-lhe licença para apuder erigir, estando de todo acabada, e ornada com os paramentos necessários o seu Reverendo Parocho a possa benzer e nella celebrarem-se os divinos officios e já os moradores daquelle lugar alcansarão licença que apresentão para apuderem erigir por ter sido vossa Illustrissima informado do Reverendo Parocho ser util, em numerario, e receberá mercê. Para provisão para se erigir a capella na forma do estilo. Olinda, onse de Novembro de mil sete centos e trinta e sete estava a firma do Illustrissmo Senhor Bispo. Dom José Fialho por mercê de Deos, e da Sancta e Apostolica Bispo de Pernambuco, e do Concelho de sua Mag.e aq.m Deos goarde e d.a pela presente concedemos licença ao Sargento Mor Manoel Esteves de Andrade, para que possa erigir a capela de N. S. da Guia no lugar xamado Acari do curato de Piancó erecta na forma da nossa constituição dada em Olinda sob nosso signal, e sello aos dose dias do mês de Novembro de mil sete centos e trinta e sete, eu Miguel Alvares Lima escrivão da Câmara Episcopal o escrevi estava a firma do Illustrissimo Senhor bispo sello valla sem sello ex causa seis mil tresentos e vinte. Monteiro Registrada a folhas cento e setenta e nove do Livro trese do Registro Olinda dose de Novembro de mil sete centos e trinta e sete, etc, etc”.

Após receber a autorização, o fundador de Acari retornou ao Seridó e logo tratou de iniciar a construção da capela de Nossa Senhora da Guia, que tornou-se o marco da evolução histórica desta cidade.
Concluindo a capela, Manoel Esteves voltou à presença daquele prelado pernambucano, apresentando-lhe essa segunda petição:

“Diz o Sargento Mor Manoel Esteves de Andrade morador do certão do Acari Freguesia do Piancó donde elle Sup.e tem erecto hua capella invocação N. S. da Guia com provisão de vossa Illustrissima, para effeito de se benser por esta acabada, e ter os paramentos necessários. Só lhe falta provisão pide a vossa Illustrissima seja servido mandar provisão para se benser a dita capella estando na forma da constituição pelo seu Reverendo Parocho, ou sacerdote de sua licença pelos longes do dito lugar e se puder diser nella missa, e os mais divinos officios, e receberá mercê”.

No dia 14 de abril de 1738, dom José Tomás deu o seguinte despacho:  “Passe provisão para se benser a capela na forma que se pede tendo ela os requisitos necessarios”. O documento final recebido pelo sargento-mor Manoel Esteves de Andrade tinha o seguinte teor:
“Concedemos licença ao sargento mor Manuel Esteves de Andrade, para que possa erigir a Capela de Nossa Senhora da Guia no lugar chamado Acari do Curato de Piancó, ercta na forma da nossa Constituição”.

No entanto, a ação pioneira do sargento-mor Manoel Esteves de Andrade não parou por aí. Retornando ao Acari, tratou de construir uma casa, ao lado esquerdo da capela, destinada à residência dos futuros párocos e sacristães. Esta casa, considerada a primeira do Acari, resistiu até 1908, quando foi demolida para dá lugar ao moderno Grupo Escolar Tomás de Araújo, onde, anos mais tarde, passou a funcionar a Prefeitura Municipal.

Lamentavelmente, o século XVIII é uma página obscura na história da cidade de Acari. Nada, exceto as sesmarias concedidas na região, até o presente foi divulgado e esta falta de documentos, nos impossibilita de relacionar os sacerdotes que foram capelães nessa localidade seridoense, durante os noventa e sete anos em que a Igreja de Nossa Senhora da Guia, permaneceu reduzida à condição de capela.
Nessa condição, ela integrou a freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó - sediada na atual cidade de Pombal, no alto sertão paraibano - até a criação da freguesia de Nossa Senhora Santana do Seridó, em Caicó, ocorrida a 15 de abril de 1748, em cumprimento as disposições contidas na provisão de 20 de fevereiro do ano anterior, expedida por dom frei Luís de Santa Teresa, à época, bispo de Olinda.
Entre os sacerdotes que passaram pela povoação de Acari, o mais antigo que se tem conhecimento é o padre José da Costa Soares, que a 15 de novembro de 1762 obteve por sesmaria uma data de terra, entre o rio Seridó e o Poço (sítio) da Raposa, na ribeira do Quipauá, no atual município de Santana do Seridó e que em 1776, exercia seu sacerdócio como capelão na próspera povoação, sede da futura freguesia de Nossa Senhora da Guia.
Lentamente, a pacata povoação do Acari foi ganhando importância e delineamento urbano. Em meados de 1832, para ali retornou o padre Tomás Pereira de Araújo, ordenado na capital baiana, aos 17 de março daquele ano.
Nascido a 15 de janeiro de 1809, o padre Tomás Pereira foi o primeiro acariense a ser distinguido com o título de sacerdote. Filho do casal Antônio Pereira de Araújo e Maria José Medeiros, pelo lado paterno, era neto de José Damasceno Pereira e Maria dos Santos Medeiros, e, materno, de Tomás de Araújo Pereira (primeiro presidente da província do Rio Grande do Norte) e de Teresa de Jesus.
Seus estudos eclesiásticos foram realizados no Seminário de Nossa Senhora da Graça, sediado em Olinda, província de Pernambuco, onde matriculou-se em 1826. No entanto, como dom João da Purificação Marques Perdigão - bispo de Olinda - encontrava-se ausente de sua diocese, o jovem sacerdote teve que dirigir-se para a cidade de Salvador, onde recebeu a sagrada ordem do presbiterato das mãos do arcebispo dom Romualdo Antônio de Seixas, tendo como companheiro de ordenação, o padre Joaquim Félix de Medeiros, também natural do Seridó potiguar.
Ao retornar ao Acari, aquele sacerdote foi recebido festivamente e após celebrar sua primeira missa na capela de Nossa Senhora da Guia, tornou-se seu capelão, em substituição ao padre Manoel Cassiano Pereira da Costa.
Prestigiado em seu meio, o padre Tomás Pereira ingressou na política e a 10 de novembro de 1834, elegeu-se deputado à primeira legislatura da Assembléia Legislativa Provincial (1835-1837). No exercício de seu primeiro mandato parlamentar, integrou a Comissão de Negócios Eclesiásticos. Por sua iniciativa e empenho, foi criada a Freguesia de Acari, através da Lei Provincial nº 15, de 13 de março de 1835, sob a invocação de Nossa Senhora da Guia, sendo esta a sua primeira conquista como deputado provincial e legítimo representante dos interesses de seus conterrâneos.
No dia 17 daquele mês e ano, por provisão assinada pelo padre Francisco de Brito Guerra - visitador provinciano - foi nomeado vigário encarregado da Freguesia de Acari, cabendo-lhe a missão de instalar aquela nova sede paroquial, a 16 de abril seguinte.
Antes, porém, em janeiro daquele ano de 1835, o padre Tomás Pereira havia sido designado vigário encarregado da freguesia de Nossa Senhora das Mercês, sediada na povoação de Serra de Cuité, província da Paraíba, funções que desempenhou por um ano e que a partir do mês de março, passou a acumular com a regência da Freguesia de Nossa Senhora da Guia, de Acari.
Ainda por sua ação parlamentar, conseguiu a aprovação do projeto, que convertido em Lei, sob o nº 16, de 18 de março de 1835, aprovou a criação da Vila do Acari, instituída dois anos antes, pelo Conselho da Província.
Em 1836, o padre Tomás Pereira de Araújo candidatou-se ao cargo de vigário colado da freguesia sob sua regência. Para a instrução do processo de habilitação, sobre sua conduta e modos de vida, atestaram os vereadores da Câmara Municipal do Acari. Em ato contínuo, “o bispo autorizou-o a opor-se por despacho de 26 de janeiro de 1836, propondo-o em primeiro lugar para o Acari, em ofício ao presidente da Província, datado de 13 de julho. O presidente indicou-o em 30 de agosto de 1836. Ainda neste 1836 foi nomeado”.
Como já ocupava a referida freguesia, o padre Tomaz continuou n exercício de suas funções e oficialmente somente foi investido no cargo de vigário colado da freguesia de Nossa Senhora da Guia, aos 18 de maio de 1839, por procuração, oportunidade em que lavrado o seguinte termo:

“Aos 18 de maio de 1839, processa-se a cerimônia de colação na Matriz do Corpo Santo, do Recife, onde o delegado do Bispo, D. Marques Perdigão, fez a imposição do barrete ao diácono Francisco Jorge de Souza, procurador do Pe. Thomaz de Araújo, que, pelo mesmo fez a profissão de fé e juramento... Finalmente mandamos passar a presente em virtude da qual havemos ao dito Padre Thomaz Pereira de Araújo por ‘collado; e confirmado na villa do Acary, deste nosso Bispado na forma do direito e de nossa Constituição, e lhe damos jurisdição ordinária para poder administrar todos os sacramentos aos seus fregueses, aos quais mandamos sob pena imposta pelo Direito o receber como seu verdadeiro parocho”.

Político influente, filiado à hostes do Partido Liberal, o padre Tomás de Araújo retornou à Assembléia Provincial reeleito para as legislaturas de 1838-1839, 1840-1841, 1848-1849 e 1860-1861. Naquela Casa Legislativa, durante as sessões de 1849, foi substituído pelo suplente padre Luís da Fonseca e Silva.
Em agosto de 1864, recebeu em sua paróquia a visita do padre mestre Dr. José Antônio Maria Ibiapina - o apóstolo do Nordeste - que, em peregrinação, ali esteve realizando suas santas missões, fundando uma Casa de Caridade, que teve vida efêmera.
Sacerdote dedicado, auxiliado por seus paroquianos, no período de 1859 a 1865, construiu a atual Igreja Matriz de Acari, que, à época, custou a importância de cem contos de réis, e, por suas proporções e tamanho, ainda hoje é a segunda maior do interior do Estado.
Na época, a imagem de Nossa Senhora da Guia, encontrava-se guardada na Igreja do Rosário. Sua translação para a nova Matriz, procedeu-se no dia 5 de agosto de 1867, oportunidade em que realizou-se uma magnífica festa, que “prolongou-se até o dia 16 daquele mês, com a presença, calculadamente, de oito mil pessoas, foi mister a construção de ruas de ranchos de palhas pela cidade”, para acomodar os visitante, fato, que durante muito tempo, foi lembrado pelo povo acariense.
À essa grande cerimônia compareceram 19 sacerdotes que não mediram as fadigas de uma jornada tão áspera até o sertão comburido pela inclemência do sol, vencendo óbices, a fim de reverenciarem a Virgem com as solenes cerimônias litúrgicas da benção de uma nova Matriz construída pelo esforço dos paroquianos e devotos das circunvizinhanças, graças à feliz iniciativa do vigário daquela centenária paróquia”.    
Homem culto, o padre Tomás era versado na língua latina e tido como excelente orador sacro. Inicialmente, regeu a Freguesia de Acari de 16 de abril de 16 de abril de 1835 a 4 de junho de 1870, quando foi substituído pelo padre Luís Marinho de Freitas.
De 1870 a 1873, esteve novamente como vigário encarregado da freguesia de Nossa Senhora das Mercês, sediada na vila de Serra do Cuité, no Curimataú paraibano, que à época, limitava-se com a antiga freguesia de Acari. No entanto, a 3 de agosto de 1873, reassumindo sua antiga paróquia, permaneceu como vigário colado de Acari até 2 de maio de 1893, quando doente, afastou-se de suas funções, falecendo no dia 13 de dezembro daquele ano. Em seus últimos momentos foi assistido pelo padre José Antônio da Silva Pinto, que oficiou suas exéquias.
Fugindo dos princípios da Igreja Católica, o padre Tomás Pereira deixou descendência no Seridó. E, espelhado, talvez, no exemplo do padre Francisco de Brito Guerra, em vida, no dia 7 de janeiro de 1869, compareceu perante um tabelião público na vila de Acari e assinando uma escritura de perfilhação, alegando fragilidade humana, reconheceu como seus, os seguintes filhos: Gercina Maria de Jesus, Teodora Maria de Jesus (filhas de Maria Custódia do Amor Divino); Maria Senhoria da Conceição (filha de Joaquina Senhorinha da Conceição); Manoel de Santana, Maria Inácia da Guia e Ana Maria da Guia (filhos de Antônia Maria da Conceição), “frutos de uniões clandestinas, proibidas pela Igreja”, que tornaram-se seus herdeiros e sucessores.
Por esta atitude, foi bastante censurado, dentro e fora da Igreja, fato que obrigou-o afastar-se de sua freguesia, passando a reger interinamente a Matriz de Nossa Senhora das Mercês, da vila de Serra do Cuité. Após promover o reconhecimentos de seus filhos o padre Tomás Pereira de Araújo “ainda viveu 24 anos e, certamente, transpassou-se com a consciência tranqüila por ter confessando publicamente o pecado cometido e, como cidadão, praticado um ato de justiça”.
Conta-se, que na juventude, o padre Tomás fora “um rapaz um pouco endiabrado e incorreu, muitas vezes nas iras do avô que depois de uma dúzia de bolos, trancava-o na cafua, tortura maior que a da palmatória. Quando em 1833 (?) o padre Tomás tirou, em concurso, a freguesia do Acari, o velho Tomás de Araújo, já cego, começou a exigir que o ouvisse de confissão. O padre, relutava, alegando o respeito filial, mas o velho replicava: O senhor como vigário da freguesia, não é meu neto é o meu pastor que tem a obrigação de atender a todos os penitentes que o procurarem. Não houve de evitar a confissão e o padre, lembrado talvez do castigo um tanto desumano, deu ao postulante a penitência de passar meia hora trancado na cafua. Tomás de Araújo cumpriu a pena e, ao sair da cafua, mandou chamar um pedreiro e demoliu-a”.

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